quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Brahms: emoção, razão e arte

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De um modo mais amplo o que se entende por “emoção” engloba uma série de manifestações somáticas, entre elas o rubor ou palidez facial, o tremor ou enrijecimento muscular, a sudorese, a dilatação ou contração das pupilas, a expressão dos lábios e dos olhos, as lágrimas e muito mais. Num nível mais elaborado de controle consciente, a emoção se expressa pelas palavras, pelos gestos, pelo que se escreve ou se cria, em termos de arte. Se bem que os primeiros sinais dificilmente podem ser objeto de controle racional, os últimos certamente o são. É possível medir o que se diz, mesmo em situações de extremo calor emocional. Ou os gestos que se faz (controlar-se e não dar um murro, por exemplo). Assim o artista, ao criar, usa sua inspiração e sobre ela aplica seu conhecimento técnico do domínio da arte que está a produzir. Isto é especialmente verdadeiro na música, ainda mais a erudita (é possível produzir-se uma obra de arte plástica sem um domínio de técnicas refinadas, mas, na música erudita não). Nessa fase ele pode deixar fluir a emoção e produzir sua obra apenas dando formato técnico àquilo que brota de seu peito. Ou aplicar sua inteligência e sua racionalidade em dar a essa inspiração uma forma estudada e polida, dentro de uma estrutura estabelecida. Na música isto sempre é feito em grau maior ou menor. Alguns elaboram menos a inspiração, outros mais. Este é o caso de Brahms. É um compositor que expressa intensa emoção de um modo disciplinado por sua férrea vontade e sua prodigiosa inteligência. Acho isso notável. Em geral vejo que (nem sempre) as grandes inteligências são acompanhadas de refinada sensibilidade e elevado padrão de moralidade. É o “fator global” da inteligência.

Emoção, sentimento e razão
Enquanto a emoção é uma reação inconsciente, o sentimento é consciente e, de certa forma, racionalizado. Medo, ansiedade, ódio e outras emoções surgem involuntariamente, como reação orgânica a estímulos externos e internos (uma lembrança, por exemplo) e se manifestam somaticamente (taquicardia, sudorese, rubor, palidez). Já os sentimentos são consentidos e voluntários e podem provir de uma emoção ou mesmo gerá-las. Não é possível desenvolver uma atividade mental puramente racional. Este processo é evocado ou gera sempre componentes emocionais. Até para se demonstrar um teorema matemático. A razão não funciona sem a emoção. Está tudo imbrincado na estrutura neurológica do organismo. O psiquismo, apesar de principalmente associado ao sistema nervoso, é uma propriedade global do organismo, envolvento a parte glandular, visceral, sensorial e motora. Assim o artista, em especial o músico, não é capaz de produzir uma obra sem envolver emoção, sentimento e razão. A chamada "inspiração" é apenas uma parte (talvez a menor) do trabalho criativo do artista. Acicutado pelos sentimentos que lhe produzem emoções, a inteligência do artista opera sobre sua criação, produzindo uma obra aparentemente despretenciosa, mas, de fato, produto de intensa concentração e extenso e, mesmo, exaustivo trabalho. Grande parte do valor estético da obra provém, principalmente, do investimento de inteligência que o artista faz sobre sua criação.

Meus compositores prediletos
Dos inúmeros compositores da música erudita, minha lista de preferidos é, pela ordem, Brahms, Beethoven, Bach, Mozart, Schumann, Wagner, Schubert, Liszt, Chopin, Tchaikovsky, Dvorak, Haydn e Verdi (claro que também aprecio outros). Das obras de Brahms, as sinfonias são minhas preferidas, 1ª, 4ª, 2ª e 3ª, nesta ordem. Os movimentos lentos são sublimes. Depois vém o “Réquiem Alemão” e, então o concerto para violino, os de piano, o duplo concerto, as aberturas, as variações, os dois quintetos, os três quartetos, os corais para órgão, as sonatas, as baladas e, especialmente, os lieds.

Porque sou mais Brahms
Aprecio muito Mozart por seu melodismo fluente, suas harmonias bem postas, seu estilo galante, sua forma correta, sua orquestração luminosa. Mas acho um tanto frívolo, superficial. Para mim Haydn, menos genial mas igualmente talentoso, com estilo bem semelhante ao de Mozart, é mais profundo. Beethoven, então, nem se diga. Além de todas as qualidades de Mozart, tem uma dramaticidade muito mais marcante. Sua música é grave e vibrante ao mesmo tempo. Sua invenção é sem par. Ora é de um lirismo capaz de enlevar o espírito às alturas. Ora é marcialmente arrebatador. Quem reuniu essas qualidades em um outro gênero foi Verdi, na ópera, em que Beethoven não se sentia à vontade. Mas, para mim, o maior de todos foi Brahms. É o herdeiro de Beethoven já num contexto romântico em que ele soube, como ninguém, disciplinar a emoção mais tocante e apaixonada com um rigor formal de suprema elaboração, sem comprometer a expressão dos sentimentos, aliando sua altíssima sensibilidade com a máxima inteligência musical e uma férrea vontade e dedicação ao árdua trabalho de compor como quem esculpe o mármore e dele tira vida, como Michelângelo ao seu Moisés: Parla! Realmente, Brahms não foi inovador em coisa alguma. Ele é um epígono do classissismo dentro do romantismo. Como o foi J. S. Bach dentro do barroco. De certa forma Wagner também o foi. Mas Brahms levou ao supra-sumo a expressão da beleza por meio da música. A beleza que vém, não só do mundo, mas, principalmente, de dentro da alma do homem. A beleza da sensibilidade e da inteligência, aplicadas com vontade ao mister da criação musical. Brahms alia força e delicadeza, vigor e lirismo numa construção de impecável rigor, chegando a ser áspera. mas de sublime sentimento.

Como é Brahms
Na segunda metade do século 19, Brahms navegava contra a corrente da música, conduzida por Berlioz, Liszt e Wagner. Seu portentoso vigor, contudo, ensejou a continuidade da tradição germânica de Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelsohn e Schumann e o surgimento de nomes como o eslavo Dvorak, e o francês Cesar Franck. Dentre as quatro sinfonias de Brahms, vejo a primeira como a mais severa, a segunda a mais lírica, a terceira a mais sombria e, no entanto, enérgica e a quarta a mais magestosa e arcaica. Todas associam um exacerbado romantismo, na linha do "Sturm und Drang" (Goethe, Schiller) alemão ao mais completo arcabouço acadêmico formal, na herança de Beethoven. Em Brahms vejo a síntese dialética do romantismo de Schumann com a dramática arquitetura de Beethoven (como se vê em sua mestria no uso da forma sonata em seu desdém pelo poema sinfônico), bem como do rico passado musical alemão de Bach com a renovação da harmonia e da orquestração, que ele levou às últimas consequências, quase impressionistas.

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