A Filosofia é erroneamente
considerada por muitos como uma ciência humana. Ela não é uma ciência, mas uma
metaciência. Abarca tudo o que pode ser cogitado pelo intelecto, seja ou não
conhecimento científico. Em se tratando de ciência, abrange todas: exatas,
biológicas, geológicas, humanas, sociais e o que mais seja, além de se dedicar
à consideração de toda e qualquer atividade, cognitiva ou não, como o trabalho
e os relacionamentos. Cuida também das linguagens, dentre elas a matemática,
dos valores, do sentir, do agir e do fazer, como no caso das artes, a par do
pensar e do falar. O filósofo, logo, tem que ser possuidor do mais vasto e
eclético cabedal de saberes, não tão superficial assim, além de, é claro, dominar
com maestria seu "métier" filosófico propriamente dito. Assim ele não
é, absolutamente, um profissional da área humanística, mas de todas as áreas.
Filosofia é um complexo que
engloba uma atitude, uma atividade, um corpo de conhecimentos e uma arte. É a
atitude de ser sempre questionador, é a atividade de refletir sobre a
realidade, é o conhecimento que esta atitude e esta atividade produzem e a arte
de proceder a esse afã e bem usar seu resultado. O conhecimento filosófico não
é vulgar nem científico porque vai além, uma vez que é crítico. A Filosofia não
prescinde da ciência, mas a supera, pois, inclusive, discute sua própria
validade e traça as diretrizes de como fazê-la. Filosofar, mais do que citar
filósofos, cujo estudo, sem dúvida, é de alta relevância, é assimilar tudo o
que disseram para formular as próprias considerações e formar a visão pessoal
de mundo, que, a todo o momento, vai sendo reconstruída.
Filosofar é debruçar-se sobre a realidade em
todos os seus aspectos (lógico, matemático, geométrico, físico, astronômico,
cosmológico, geológico, químico, biológico, psíquico, social, econômico, ético,
político, cultural, artístico, linguístico, científico, tecnológico,
metafísico, espiritual e qual outro seja); assimilar seu conteúdo, refletir sobre
ele, informar-se o máximo possível sobre o que já disseram filósofos,
cientistas, literatos, a humanidade enfim, e daí tirar suas próprias
conclusões, contestando o que se considerar incorreto; formular conceitos que
descrevam de forma adequada a realidade assimilada, delimitando sua esfera de
aplicabilidade; fazer levantamentos e experimentos no que for pertinente e
possível, para verificar as relações existentes entre aquilo que os conceitos
representam nas várias categorias existentes; formular hipóteses que proponham
explicações para as relações obtidas; deduzir consequências a partir dessas
hipóteses; testar a validade e veracidade das conclusões achadas, reformulando
as hipóteses, caso as conclusões não se adequem à realidade e articular argumentos
que defendam o resultado concluído e sejam capazes de se opor às explicações
alternativas existentes e verificadas errôneas. Procurar as palavras mais
adequadas, analisar sua semântica, suas limitações de aplicabilidade e
expressar as conclusões em um linguajar acessível não apenas ao especialista,
mas à pessoa comum, com certo grau de cultura. Antes de qualquer afirmação,
porém, é preciso dizer em que sentido cada palavra está sendo empregada, pois
grande parte das discussões filosóficas é puramente semântica. Essa é a
metodologia científica que proponho seja também aplicada à Filosofia, para que
esta deixe o patamar de uma esfera de conhecimentos baseada em pontos de vista
pessoais e se coloque como um corpo objetivo do saber, independente de escolas
de pensamento.
Nisso tudo, é mister ter
desenvolvido os conhecimentos, habilidades e competências filosóficas que o
estudo formal propicia. Mas é preciso ir além do costume de se fazer apenas o
estudo crítico da produção filosófica de algum autor ou escola e ter a ousadia
de propor sua contribuição pessoal, ou mesmo, quem sabe, criar uma escola. O
ideal é que a Filosofia se dispa de qualquer rótulo, escola ou adjetivação,
isto é, que se apresente em toda beleza de sua nudez, pois assim é que poderá
ser admirada em sua verdade e esplendor.
Deleuze está certo, em parte,
pois filosofar não é apenas construir conceitos. Certamente que isso é um dos
mais importantes aspectos da Filosofia, mas não é o mais importante. Os
conceitos são arbitrários. Um conceito é uma atribuição de significado a um
significante, limitando-o de forma a se saber a que se aplica e a que não se
aplica. Isso é necessário para se fazer uma imagem representativa da realidade,
em todos os seus aspectos, para que se possa discorrer sobre ela com o uso da linguagem,
que é a única maneira racional de se poder fazer compreender o modo como se
apreende essa mesma realidade. Mas o fundamental é investigar as relações que
aquilo que esses conceitos significam guarda com todo o resto, no mundo real
objetivo. O cerne da Filosofia é justamente refletir e especular sobre essas
relações e propor modelos mentais que as representem em termos dos conceitos
formulados. Mas é preciso se proceder a uma verificação fatual ou a uma
comprovação lógica, que, em última instância se baseia em evidências fatuais,
que valide as hipóteses formuladas, na realidade objetiva do mundo. Não me
refiro apenas ao mundo natural, mas também ao mundo das abstrações, das normas,
dos valores. Quando Kant postula a existência de juízos sintéticos a priori, é
preciso entender o que ele quer dizer com “juízo”, “sintético” e “a priori”,
para compreender o significado disso. Mas não só. É preciso investigar se, de
fato, existe tal tipo de coisa. Isto é, construir a Filosofia, que precisa
adotar critérios científicos de validação de suas proposições. Assim ela se
libertará da existência de escolas de pensamento e se tornará uma disciplina
que descreva as razões primeiras e necessárias de tudo o que existe, qualquer
que seja a ordem considerada. Nisso se inclui lógica, ética, estética,
epistemologia, política e, inclusive, metafísica, que não é nada famigerada,
até mesmo em seu capítulo principal, a ontologia.
Ao filosofar, o importante não é
citar quem disse isso ou aquilo, mas debater o que é dito, não importa por
quem. Ler muitos textos de vários filósofos, concentrando-se no conteúdo. Então
fazer uma apreciação das diferentes abordagens e explicações de dado fato e
tirar a conclusão pessoal, procurando refutá-la para ver se é suficientemente
bem estabelecida. Depois, buscar argumentos que a possam defender. Nesse
processo, certamente que se usa bastante a intuição, mas é preciso munir-se de
argumentos lógicos. O que não é importante é saber se a conclusão segue tal ou
qual corrente de pensamento. A Filosofia precisa se despir de adjetivos e
procurar chegar a um consenso, como o fazem muitas ciências, inclusive quanto
às definições dos termos empregados. Por isso, antes de se iniciar qualquer
discussão, os debatedores precisam fazer um acordo sobre o que estão entendendo
por cada palavra. Se não houver consenso, que sempre se mencione em que acepção
o termo está sendo usado.
A Filosofia, contudo, é muito
mais do que um empreendimento destinado a compreender o mundo: É uma proposta
de vida, uma mestra que exerce uma função, muitas vezes assumida pelas
religiões, mas muito mais bem executada pela Filosofia, que é a de propiciar um
modo de apreender a realidade e de fazer face a ela de forma a conduzir a vida
com proveito, sentindo-se assim realizado e pacificado consigo mesmo. De manter
a mente sempre aberta, inquiridora e questionadora, sem servilismo de qualquer
natureza a qualquer ideologia, credo ou facção, comprometido apenas em
descobrir e fazer prevalecer a verdade, não importa a quem ou a que possa incomodar.
De pautar toda ação por esse compromisso, em benefício da maximização da
felicidade para o maior número de seres, quiçá em detrimento do proveito
pessoal. Enfim, de levar a vida de forma virtuosa, por seus sentimentos,
pensamentos, comportamentos, opiniões, atitudes, posições e obras, jamais sendo
omisso, pois sempre se tem a ver com tudo aquilo de que se toma conhecimento.
Isso é o sentido primário da
Filosofia, isto é, a busca da sabedoria. Considero que intelectual não seja
apenas uma pessoa que domine vastos conhecimentos. Um médico, um engenheiro ou
um empresário podem dominar vastos conhecimentos sem serem intelectuais. O
intelectual é aquele que tem conhecimentos mais teóricos e consegue
correlacionar o saber de sua área específica com as demais áreas do
conhecimento humano. O passo seguinte é ser um erudito, isto é, quem domine seu
campo de saber em profundidade e abrangência superlativas. Erudição consiste,
justamente, em se entender tão ampla e profundamente de um assunto que se seja
capaz de argumentar, articular o pensamento, persuadir, expor uma ideia,
desenvolver um raciocínio, sempre com grande embasamento e traduzi-lo de uma
maneira inteligível para públicos de diferentes níveis e áreas de conhecimento.
Um polímata é um erudito em variados campos de conhecimento.
Já o filósofo se caracteriza
principalmente por ser uma pessoa que reflete e questiona. Normalmente ele deve
ter conhecimento de Filosofia e História da Filosofia, e, portanto, ser um
intelectual, mas não necessariamente. Alguém pode ser um filósofo sem que seja
intelectual e nem todo intelectual será um filósofo. Uma característica do
filósofo é seu amor e sua busca pelo saber e, mais que o saber, pela sabedoria.
Erudição e sabedoria são, certamente, conceitos bem distintos, como já está
mais que provado. Existem dois conceitos de filósofo. Um amplo e um restrito.
Segundo o amplo, filósofo é todo aquele que se debruça sobre a realidade para
refletir, questionando e buscando respostas, mesmo que não as ache. Assim, não
se requer nenhum tipo formal de estudo para ser-se filósofo, na concepção
ampla. Na concepção restrita, um filósofo é um profissional, com diploma
universitário, mestrado e doutorado na área, detentor de um amplo e profundo
conhecimento de tudo o que trata a Filosofia e do que disseram os grandes
filósofos, aliado à habilidade de, ele próprio, fazer uso das ferramentas de
raciocínio para construir sua visão da realidade, com a devida competência
retórica e pedagógica para expô-la didática e convincentemente ao público.
Todavia, há casos em que a pessoa, mesmo não tendo treinamento formal em
Filosofia, se dedica a seu estudo e à elaboração de propostas filosóficas de
forma bem embasada, argumentada e articulada, de tal sorte que pode ser dita
filósofa na acepção restrita. Isso ocorreu com vários pensadores na história da
Filosofia.
Em sua origem, a Filosofia era a
busca da sabedoria, mais que do saber. O filósofo é o amante da sabedoria. E
sabedoria é como bem conduzir a vida, em harmonia com o outro e a natureza. De
tal modo que se propicie a própria felicidade e a do outro.
Ser filósofo é, pois, saber como
viver. Filosofar é, principalmente, refletir sobre a vida e o Universo,
procurando encontrar o sentido, a razão, o propósito de tudo o que existe.
Nisso se aplica a inteligência, com grande proveito. Mas o que se vê, inclusive
nos cursos de Filosofia, é uma busca de erudição vazia, um acúmulo de
informações sobre tudo o que disseram os filósofos, mas, nem sempre, de modo a
usar todo esse conhecimento na construção da vida. Filósofo é aquele que
filosofa e não o que sabe tudo o que os filósofos disseram. Parece que os
cursos de Filosofia optaram por não formar filósofos, mas apenas “entendidos em
Filosofia”. É preciso romper com isso e ter a coragem de possuir e expressar
suas próprias ideias, de contestar os filósofos por si mesmo e abrir a mente
para todas as possibilidades. Isso é sabedoria, desde que seja acompanhada do
testemunho da própria vida.
Chego, agora, ao sentido
original da Filosofia, que é a busca da sabedoria. Sábio é aquele que usa o
conhecimento que tem, que pode ser muito ou pouco, sua inteligência,
sensibilidade e vontade, de modo proveitoso e adequado, isto é, de forma a
acarretar a maximização da felicidade do maior número de pessoas e, em tudo, ser
justo, equitativo e respeitoso do direito alheio, inclusive dos seres
irracionais e inanimados. Principalmente, é quem age sempre colocando a bondade
como primeira prioridade. Sim, porque ser bom é mais valioso do que ser justo e
honesto, pois o justo e o honesto podem ser frios e calculistas, mas o bom é
sempre justo e honesto, e, portanto, sábio. Se o sábio for também erudito então
temos a pessoa humana com as melhores qualidades que se pode encontrar, pois
ela será também modesta e virtuosa em todos os outros aspectos. É o ideal do
filósofo da Grécia antiga ou do “santo” dos primeiros cristãos. Isso não
significa que seja casmurro. Certamente o verdadeiro sábio é alegre e jovial.