sábado, 16 de janeiro de 2010

Localização da Consciência


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Este é um assunto sobre o qual já lí, estudei e refletí longamente, tendo, inclusive, já postado muito, tanto em comunidades do orkut, especialmente a minha, Wolf Edler, quanto em meus dois blogs e meu ning, cujos links estão em meu perfil. É só procurar pelas palavras chave "consciência", "mente", "cérebro" nas caixas de busca.

Preliminarmente quero dizer que as analogias são muito perigosas. Elas podem ilustrar algum aspecto particular de uma teoria, mas não se pode estender ao resto da teoria o que se verifica na analogia. Prefiro não usá-las e tratar diretamente com os conceitos envolvidos e suas relações.

Outra questão que precisa ficar clara é que não existem mistérios de espécie alguma. O que existem são fatos ainda não explicados. A história da ciência e da filosofia nos dão uma confiança muito boa de que qualquer tema, não importa o quão aparentemente misterioso seja, será um dia compreendido e explicado. Há que se dar tempo ao tempo, uma vez que nossa espécie é muito jovem neste planeta, a civilização mais ainda e a ciência, um bebê.

A terceira coisa que quero ressaltar é que o caráter de simplicidade de uma explicação é realmente desejado e preferível, desde que se tenham várias outras que expliquem a mesma coisa de forma mais complicada. Se não houver explicação mais simples, a complicada tem que ser aceita, caso dê conta de explicar.

Isto posto passarei a comentar o tema, que é a consciência e sua localização. Para tal há que se conceituar claramente os termos envolvidos e delinear onde se pretende chegar.

Cérebro

Cérebro é um órgão do sistema nervoso dos animais mais evoluídos No caso dos vertebrados está abrigado na caixa crâneana, junto aos outros órgãos que constituem o "encéfalo". O tecido cerebral, como o do resto do sistema nervoso, é constituído de neurônios e células gliais, além das membranas delimitadoras. Os neurônios possuem dendritos e axônios, pelos quais transitam as mensagens nervosas, por meio de uma inversão de polaridade elétrica de suas membranas, ocasionada por transporte iônico de sódio, potássio e cálcio. Nas sinapses entre dendritos de um neurônio e o axônio de outro, também há transmissão de mensagem nervosa, por meio de portadores químicos que são os neurotransmissores, disponíveis nas células gliais, que, além de fornecê-los, também suporta a estrutura reticular dos neurônios. No ser humano existem cerca de 86 bilhões de neurônios, interligados por cerca centenas de trilhões de sinapses. Tal estrutura ocorre no cérebro, cerebelo, bulbo, medula e nervos. É sobre esta estrutura que está se cogitando que a consciência resida ou não. É importante notar que tal estrutura está completamente conectada com o restante do organismo, isto é, os músculos, os órgãos sensoriais, as vísceras, as glândulas endócrinas, os vasos sanguíneos e o resto, de tal forma que não se pode falar de ocorrências exclusivas do sistema nervoso, sem a participação do resto do organismo.

Mente

Conceitua-se mente como uma "ocorrência", isto é, um acontecimento, um fenômeno que se dá com o animal vivo, que possibilita a coordenação do funcionamento do seu organismo, a percepção do mundo exterior e interior à própria mente, a memória, o pensamento, o raciocínio, a consciência (psíquica e moral), a autoconsciência (o "eu"), as emoções, os sentimentos, os desejos, as volições, as decisões e os demais fatos de ordem não estritamente corpórea, como são os movimentos, as sensações ou o funcionamento visceral. Note-se que a mente não é uma "coisa", isto é, não tem localização, extensão, volume, massa, energia, composição substancial, temperatura, cor, sabor, textura, rigidez ou qualquer propriedade física, química ou biológica. Conceituando-se entidade como tudo o que seja capaz de existir objetivamente, mesmo que não concretamente, isto é, que não seja apenas uma concepção irrealizável, dizemos que a mente é uma "entidade", não material. De que natureza seria, pois? Note-se que não é uma abstração, como um número, uma figura geométrica, um valor ou uma norma, que só existem como idéias. A mente tem existência real no mundo, e, como concebo, no mundo natural, isto é, não é uma entidade cultural (social ou econômica, por exemplo).

Em que consiste o mundo natural? À primeira vista de espaço, tempo, matéria, radiação e campos (note-se que não falei "energia", pois esta não é um tipo de entidade e sim um atributo de entidades). Mas não é só isto. Mais do que isto, o mundo natural é feito de "estruturas" e "ocorrências". Estas são as categorias mais elevadas de entidades naturais. O monte de átomos que compõe o meu corpo só é o meu corpo porque se dispõe de acordo com certa estrutura. E a minha vida é uma ocorrência que se dá com esta estrutura. Galáxias, estrelas, prédios, aparelhos e empresas são estruturas. Furacões, terremotos, relacionamentos, eleições e doenças são ocorrências. A mente é uma ocorrência que se dá com a estrutura do organismo, em especial com o cérebro, mas não só.

Localização da estrutura que gera a mente

Vários experimentos clínicos atestam que a mente é uma ocorrência que se dá principalmente no cérebro (mas não apenas). A literatura neurocientífica está repleta deles. No cérebro, ao que parece, existe uma localização preferencial para o registro de cada informação, mas ela também está registrada em outros locais, de modo que, havendo lesões, é possível uma certa recuperação, até de memórias. Um evento é registrado em vários locais de memorização, segundo cada um de seus aspectos (verbal, visual, emocional, cinestésico etc). Existe uma concepção holográfica dos registros cerebrais, mas não acho que ela seja exclusiva. Considero uma possibilidade muito plausível, mas não de uma forma estrita. Explico: numa fotografia normal o que se registra é a amplitude e a frequência da onda luminosa, mas não a fase e a elongação. Na holografia se registra a elongação e a fase, que são capazes de gerar a amplitude e reconstruir uma imagem, mesmo com um fragmento do holograma, enquanto na foto ordinária, cada fragmento não tem informação sobre o resto da foto. No caso do cérebro isto não é tão radical, mas é possível umas partes substituirem as outras, em suas funções. Todas as funções mentais se dão por excitação de neurônios e transmissão de impulsos entre eles. Esta é uma rede incrivelmente complexa. Seu estudo demanda uma especialização médica bem profunda, especialmente se a pessoa for se tornar pesquisadora, trabalhando com psicólogos, filósofos, engenheiros de computação (para produzir inteligência artificial) e essa turma toda da pesada.

Se a mente é um "epifenômeno" do organismo (especialmente do cérebro) é uma questão de definição do que seja epifenômeno. De fato, a mente não é o cérebro e nem é material (senão se poderia transferir memórias numa seringa). Mas ela acontece em virtude do funcionamento do cérebro. Não considero que isto a caracterize como sendo de natureza transnatural. Trata-se de uma ocorrência natural do organismo, que não sobrevive à sua falência.

Consciência e autoconsciência

A consciência psíquica (consciousness, e não conscience) é a propriedade da mente estar ciente do mundo exterior e de seu processamento interno. A maior parte das sensações provinda dos sentidos (visuais, auditivas, olfativas, gustativas, táteis, térmicas, cinestésicas, álgicas, vestibulares etc), bem como a maior parte do processamento mental, se dá sem que se tome conhecimento do que ocorre. Somente é percebido aquilo que prende a atenção e o pensamento, só em parte, é acompanhado. Estar consciente é estar sabendo o que está acontecendo. No sono, desmaio, anestesia e morte, está-se inconsciente, no último caso, de forma definitiva. A consciência é a mais importante das ocorrências que fazem parte da mente. Ao se dizer que se está sabendo do que acontece, a primeira pergunta é "Quem?". Sim, qual é o ente que tem consciência do que ocorre em sua mente? Tal ente, denominado "eu", é o dono de sua mente e de seu corpo. A "autoconsciência" é esta noção que se tem de si mesmo. Também ela é, segundo as mais recentes pesquisas neurológicas, uma ocorrência mental e, logo, proveniente do funcionamento do organismo, portanto, natural, sem ser material. A noção de si mesmo é dada por uma varredura constante que o cérebro faz do próprio organismo e do mundo, atualizando as informações sobre tudo o que esta ocorrendo com o corpo, a mente e o mundo exterior. O cruzamento dessas informações permite que se tenha a noção da distinção da pessoa em relação ao resto e de que ela continua sendo ela mesma ao longo do tempo, mesmo modificando-se.

A mente e os sentidos

Falou-se que o cérebro seria o "hardware" e a mente o "software" e que o hardware não pode construir o software. Este é um ponto em que as analogias falham. A mente não é, nesta analogia, um software instalado em um hardware em branco, mas sim um tipo de "eprom", em que o software está gravado (e até pode ser modificado), mas não é volátil. A noção de "tabula rasa" é falsa. À medida que o desenvolvimento embrionário e fetal vai ocorrendo, tanto o cérebro quanto os órgãos dos sentido formam-se paralelamente. Então, o protocérebro já vai recebendo impressões dos protosentidos e tudo vai se formando junto. Ao nascer, o bebê já tem muitos registros de percepções em sua memória e, nos primeiros dias e meses, isto cresce tremendamente. Esses impulsos sensoriais, juntamente com as respostas motoras de toda ordem (movimento, choro etc) é que vão formando as ligações sinápticas que estruturam o hardware, juntamente com o software, ao mesmo tempo. Os sentidos são as principais ferramentas para a construção da mente. Tudo provém deles, exceto o que já vem geneticamente pronto, que, além da existência das células nervosas, no ser humano, é pouco, como o instinto de sugar e agarrar. A maior parte é aprendida, como o ato do coito, que nos animais é instintivo. Mesmo na vida adulta, o exercício dos sentidos é capaz de gerar conexões sinápticas e aumentar a inteligência, por exemplo. De fato, nos seres biológicos, o hardware constrói seu próprio software.

Pensamento

Percepção, pensamento e consciência são fatos distintos da mente. O pensamento é uma ocorrência que se dá na mente, como um sentimento, uma emoção, uma percepção, uma volição, uma evocação, uma memorização, um raciocínio etc. E mente nada mais é do que a entidade que consiste em um cérebro em funcionamento atual ou potencial. A mente não é o cérebro, mas não existe sem ele. É um epifenômeno do cérebro, isto é, um acontecimento que se estabelece devido a seu funcionamento, que depende de sua constituição, estrutura e dinâmica. Assim o pensamento é uma sequência de evocações de percepções, de associações, de sentimentos, e de tudo o que o funcionamento do cérebro pode produzir. Note-se que o pensamento pode mesmo ser inconsciente. Certamente para pensar a mente requer que o cérebro funcione e, portanto, consuma energia. Mas o pensamento não é energia, nem tampouco reações químicas. Não é matéria e nem espírito (que, aliás, não existe). Pensamento pertence à categoria de realidades que denominam-se “ocorrências”. Isto é: pensamento é um processo que se dá na mente, um acontecimento, um evento. Para que tal evento ocorra é requerido o fornecimento de energia como, de resto, em todo processo orgânico. Mas esta energia é a fornecida pela metabolização do alimento que se ingere. Ela não provem de fonte externa ao organismo. Energia não é uma entidade e sim um atributo. Não existe energia em si mesma, mas apenas como propriedade de alguma coisa. Como uma cor, por exemplo. Tal ocorrência consiste em transmissões de sinais entre neurônios. Estes sinais caminham pelos dendritos e axônios como uma onda de inversão de polarização de suas membranas, em função da variação da concentração de íons de sódio, potássio e cálcio. A comunicação entre os dendritos e os axônios é feita pelos neurotransmissores, que estão disponíveis no meio glial, tratando-se, pois, de um transporte químico de moléculas. Tais assuntos podem ser vistos em qualquer tratado de anatomia e fisiologia neural.

Uma questão, contudo, é inteiramente pertinente: de onde vém o pensamento? Isto é, o que desencadeia a ocorrência de um pensamento na mente? Várias coisas. Em sua orígem, todo processamento mental provém das sensações que os órgãos dos sentidos levam ao cérebro. São os estímulos visuais, sonoros, térmicos, táteis, olfativos, gustativos bem como dos sentidos que percebem o equilíbrio, o posicionamento do corpo e o funcionamento dos órgãos internos que provocam as primeiras cadeias de transmissões de sinais neurais que se transformam em percepções, assim que interpretados. Em segundo lugar, o próprio cérebro, em seu funcionamento, evoca, por associação ou mesmo aleatoriamente, a percepção de imagens já registradas na memória. E as processa, produzindo novos resultados que passam a ser registrados. Esse fluxo de processamento neural é que é o pensamento. Ele pode se dar de modo consciente ou inconsciente, voluntário ou involuntário. Quando consciente, o “eu” (self) toma ciência da ocorrência. Nos sonhos e alucinações há uma emulação inconsciente da consciência, que, inclusive, pode acarretar respostas motoras (sudorese, micção e mesmo, locomoção, além do movimento dos olhos, característico do estágio REM do sono). Dependendo de seu modo de ser, o pensamento pode ser um raciocínio, uma emoção, um sentimento, uma decisão. Em todos estes casos, o processamento mental desencadeia alterações somáticas (hormonais, vago-simpáticas ou outras), como excitação, taquicardia, sudorese, rubor, palidez, secura na boca, vaso constrição ou dilatação. Todas essas alteração são percebidas pela varredura dos sentidos e registradas na memória com parte da ocorrência, de modo que o processamento mental não é apenas cerebral, mas envolve todo o organismo.

Comentários

O fato da consciência ser uma função orgânica de certos organismos biológicos evoluídos, não implica na recíproca, ou seja, que todo organismo, biológico ou não, tenha consciência. Todavia não há impedimento de que um artefato possa ter consciência. Qual seria? É possível dotar um robô de consciência sim, porque não? Só não se tem é competência tecnológica para isto, por enquanto. Mas pode-se vir a ter dentro de poucas centenas de anos.

As evidências de que os organismos biológicos constroem seu próprio hardware e software são patentes. Primeiro que esta separação em hardware e software, aplicável aos processadores eletrônicos, não se aplica aos sistemas biológicos. Neles a construção do software é feita pela construção do hardware, já com o desenho ajustado para a função que exercerá. Não existe uma estrutura pronta e vazia para acolher dados. Os dados são registrados como informação pela própria formação de conexões no momento do registro. O cérebro é construído não apenas na gestação, mas ao longo de toda a vida, entendendo-se que mudanças de conexões são novos projetos de reforma da estrutura, que estão a todo momento ocorrendo, especialmente durante o sono. Nessas reformas de estrutura é que se fixam na memória cortical as ocorrências experimentadas e temporariamente registradas no sistema límbico. E os registros de memória não são apenas imagens, sons ou outras percepções sensoriais. São também, emoções, sentimentos, raciocínios, desejos, decisões, enfim... tudo o que possa acontecer na mente.

Não há problema nenhum em considerar a mente como epifenômeno gerado pelo cérebro, dizendo que, então, esta geração já seria um processo mental, e, assim, ter-se-ia uma regressão infinita. Nada disso! Isto está parecendo como o argumento Kalam de que o Universo tem que ter um criador, pois senão ou ele teria surgido do nada ou sempre teria existido. No primeiro caso diz-se que o princípio da causalidade impede que o nada gere alguma coisa e no segundo, o argumento Kalam diz que não seria possivel o Universo ter começado em um momento infinitamente afastado para o passado, pois, então, não teria havido tempo para se chegar até o presente, e o presente está aí. Duas falácias. Primeiro que não existe nenhum princípio de causalidade. A atribuição de causa para um evento é um fato eventual e não obrigatório. Segundo que dizer que o Universo sempre existiu não é dizer que seu começo se deu num momento infinitamente distante e sim dizer que não teve começo nenhum, o que é muito diferente. Então é possível que o Universo seja eterno ou que tenha surgido sem causa. Mas isto não é o assunto do tópico. A mente pode ser uma entidade imaterial gerada por uma entidade material sim, porque não? Isto se dá em muitos outros casos: Uma orquestra tocando produz uma música, que não é material. Do mesmo modo que a matéria inanimada produziu a vida, na origem da série evolutiva. O ônus da prova não é provar que a matéria pode gerar a mente mas sim provar que não pode.

Artefatos conscientes

Turing apenas provou que uma máquina de Turing não pode ter consciência. Robôs podem vir a ser construídos com arquiteturas inteiramente diversas, inclusive da própria arquitetura da mente humana, da qual não temos a mínima idéia de como seriam. Portanto não está provado que não se possam construir artefatos dotados de todas as capacidades humanas e, inclusiver de muitas outras que não possuímos, como sintonizar quaisquer frequências de radiação, enxergar raios X, promover uma rede mental de processamento entre eles todos. Não há limite para o que se possa imaginar e, até mais, há possibilidades nem sequer passíveis de serem imaginadas. Esperemos não centenas nem milhares, mas milhões de anos.

Inclusive os robôs poder vir a ser construídos por meio de engenharia biológica e não mecatrônica. Isto é: serem projetadas moléculas de DNA que venha a construir o tipo de ser vivo que se pretenda, átomo por átomo. E a consciência pode vir a ser implementada nesses projetos, quem sabe até em vejetais ou em algum novo reino que venha a ser inventado, tipo animais clorofilados, que façam fotossíntese.

Livre arbítrio

O livre arbítrio é a capacidade de escolha da mente e isto não é privilégio humano. Até uma formiga tem. Tal capacidade decorre do caráter probabilístico do estado quântico de um sistema, ou do Princípio de Incerteza. Se ele não existissem seríamos todos zumbis (que, inclusive, existem, mostrando que a consciência não é um fator determinante para a sobrevivência). Um artefato também pode vir a possuí-la e não simulá-la. Não há impedimento teórico nenhum para isto, só incompetência tecnológica.

O livre arbítrio não é uma ilusão. É um fator real no processamento mental. Ao analisar possíveis futuros de uma ação ou de outra alternativa, como num jogo de xadrez, mas também na vida (casar ou não casar?) a mente pondera e pré-vivencia possíveis situações, comparando o quanto de dor ou prazer elas propiciariam, como base nos conhecimentos atuais. Mas não é só a dor e o prazer que pesam. Há o aspecto ético, os compromissos, como também a chance de promover uma grande virada. Tudo isto é colocado à disposição da mente, que toma uma decisão e age. Não há determinismo nisto, como pensam alguns psicólogos que consideram que sempre se decide pelo que nos beneficia, mesmo que aparentemente não. Existe o verdadeiro altruísmo, em que a pessoa decide em completa oposição a qualquer benefício pessoal.

O livre arbítrio, contudo, não é prova nenhuma de que a mente não seja uma ocorrência do cérebro (e do conjunto do organismo). Até hoje não ví nenhum argumento capaz de derrubar minha concepção monista fisicalista da mente. Não estou me referindo especialmente à consideração da existência de uma alma espiritual, mas mesmo de algum tipo de entidade nem espiritual nem física, que seria a mente, mesmo que não sobreviva ao corpo. O que é preciso entender bem é que físico não significa apenas material: inclui campos, radiação, estruturas e ocorrências, além do espaço e do tempo.

Consciência dos animais

O cérebro é uma condição necessária mas não suficiente para produzir a mente e, nela, a consciência. Nâo existe consciência sem cérebro, mas existe cérebro sem consciência. É preciso distinguir a consciência da autoconsciência. Alguns animais que possuem consciência não possuem autoconsciência. Esta requer uma complexidade maior na estrutura neurológica do que a simples consciência. A partir de que nível a mente animal possui consciência e autoconsciência não é fácil determinar.

Sugiro a leitura destes dois artigos:
http://plato.stanford.edu/entries/cognition-animal ,
http://plato.stanford.edu/entries/consciousness-animal .

Aliás, ambos esclarecem muitos pontos a respeito da cognição e da consciência humanas, já que somos animais, apenas mais evoluídos, mas nada temos de essencialmente diferente. Isto é, não há nenhuma propriedade do ser humano que também não o seja, em grau menor ou, às vezes, maior, propriedades dos animais superiores.

Corrigindo uma interpretação

O livre arbítrio existe exatamente porque o determinismo não existe na natureza. Isto faz parte do mais profundo comportamento daquilo que é o constituinte universal da matéria, da radiação e de todas as estruturas formadas por elas, como o ser humano: o campo. Trata-se do princípio da incerteza ou do caráter probabilístico do estado dos sistemas físicos, que são todos feitos de campo. Como disse o Walter, o corpo, o cérebro, a mente e a consciência decorrem da existência de campos de todo tipo que mantêm as estruturas e seu modo de evolver. A diferença é que, enquanto o corpo e o cérebro são entidades materiais, a mente e a consciência não o são, mas sim um tipo de entidade que denomino de "ocorrências". Examinando mais profundamente o conceito de "epifenômeno", vejo que ele não se aplica convenientemente à mente e à consciência, pois, apesar de serem entidades que "emergem" (e não transcendem) do funcionamento do sistema nervoso, não adquirem uma existência de direito próprio, como seria o caso de epifenômenos. Assim prefiro ficar com o conceito de "ocorrência", que, de fato, mostra que, mesmo não sendo material, a mente só existe como produto do funcionamento de uma entidade material. Não gosto de analogias, mas posso dizer que seria como a música que sai de um aparelho de som. Ela não é material, mas não existe sem que algo material a produza. A música, assim, é uma "ocorrência".

No meu entendimento a mente não é uma ocorrência da consciência e sim uma ocorrência do cérebro. A consciência é uma das funções da mente, não a precedendo. É como uma música. A música não é a partitura em que está escrita e nem as vozes e instrumentos que a executam. A música não está latente nos instrumentos. Soá-los pode não produzir música alguma. Ela é a ocorrência de sua execução. Mas esta ocorrência só se dará se houverem vozes ou instrumentos (podem ser gravações, rádios ou televisões). E a música também não é o som. É um conteúdo do som. Assim a consciência, como aliás, as demais funções psíquicas, como o pensamento, as emoções etc. Tais coisas se dão no cérebro mas não são matéria e nem espírito. São acontecimentos, processos, ocorrências. Não se pode extrair um pensamento numa seringa e injetá-lo em outro cérebro. Nem uma emoção. A consciência, especialmente, é um estado de funcionamento do cérebro. A mente é o cérebro em funcionamento, mesmo inconsciente. A consciência é uma propriedade da mente. Um cérebro recém morto não tem mente nem consciência. Isto se esvai com a morte e deixa de existir. A consciência não é uma estrutura, pois esta é estática. Como ocorrência, a consciência é dinâmica. Ela não "é", mas "está sendo", a todo momento em que estiver ligada. Mas, nos estados inconscientes da mente (sono, desmaio, anestesia) em que o organismo permanece vivo, como as estruturas e registros de memória que geram a consciência estão presentes, ela volta integralmente findo o episódio de inconsciência. Não existe parte não mental da consciência e o espírito não tem energia alguma, simplesmente porque não existe.

Meio Cérebro

Por isto é que analogias não são uma boa coisa. A pessoa pode viver com meio cérebro porque as funções não são rigidamente localizadas. A plasticidade do cérebro permite relocações, além de poder haver multiplicidade de locações para uma mesma função. No caso do instrumento musical, geralmente a emissão de uma nota é associada a certas partes do instrumento, que, faltando, não permitem a execução de toda a música. Mesmo assim, como no caso dos instrumentos de corda e arco, é possível emitir a mesma nota em várias cordas e continuar a música na falta de uma ou mais delas. Mas isto já não acontece no piano, por exemplo. É preciso muito cuidado no uso de analogias, pois elas se prestam para ilustrar apenas um ou outro aspecto do que se está considerando. O sentido reverso, isto é, considerar que uma outra propriedade da analogia também o seja do que está sendo considerado, nem sempre é verdade.

Monismo e dualismo

Na explicação da mente, o monismo considera que ela seja uma ocorrência de uma única natureza, física ou transfísica. No monismo fisicalista, que advogo, a mente é uma ocorrência inteiramente bio-física, sem ser material, contudo. Outra modalidade do monismo é o idealista, que considera que a única realidade são as idéias ou os espíritos, das quais ou dos quais o mundo físico é uma representação quimérica.
A segunda visão é a dualista, que considera a existência simultânea de duas realidades, a física e uma outra, que podem ser os espíritos (dualismo substancial) ou uma realidade de estruturas mentais ou ideais não espirituais (dualismo de propriedades). A primeira concebe que a sede da mente e da consciência seja a "alma", entidade etérea e não física, mas intimamente ligada ao organismo, enquanto vivo. A segundo é o caso de epifenomenalismo, em que a mente e a consciência, mesmo emergindo do cérebro, constituem-se em uma entidade de natureza não física, sem relação causal como determinante de ocorrências físicas no organismo.
Me parece que a realidade da matéria e do mundo físico é bem evidente para que se possa descartar considerá-los como ilusões (hipótese Maya do hinduísmo). De qualquer forma, a realidade do mundo exterior à mente é uma crença, mas apoiada em fortes indícios de sua veracidade. O epifenomenalismo é um conceito inteiramente desnecesário, como um modo de se ficar "em cima do muro". O verdadeiro debate se dá entre o monismo fisicalista e o dualismo de substâncias, este adotado pela quase unanimidade das religiões, com variações. Em algumas a alma morre com o corpo, mas ressucitará com ele após o Juizo Final. Em outras ela sai do corpo e pode ir para o céu ou o inferno (não vou considerar agora a questão da existência e propriedades desses locais). Noutras ela reencarna em outros corpos. Até o presente momento não ví nenhuma evidência ou comprovação da existência de tal tipo de coisa. Além do mais, há uma séria dificuldade na consideração da interação da alma com o corpo.

Concordo integralmente que a mente, com todos os seus atributos, incluindo a consciência, seja uma entidade puramente natural (rejeito, pois, o dualismo de substância) e, como observei, nem sequer vém a ser um epifenômeno do cérebro (dualismo de propriedades). Trata-se de um fenômeno inteiramente biológico (monismo fisicalista), que denomino de ocorrência. Isto significa que a mente emerge do substrato biológico material (o organismo, especialmente o cérebro, mas não só) como um acontecimento que se dá nele, mas, ela mesma, não é material. Só que não possui uma independência que possa lhe caracterizar como algo existente por si mesmo, como acontece com a noção de “alma”. Além da mente, outras entidades são também ocorrências, como a música e muitas entidades sociais, como empresas, associações, religiões, clubes. No caso social, existe o conceito de “representação social”. Segundo Fischer « La représentation sociale est un processus d’élaboration perceptive et mentale de la réalité qui transforme les objets sociaux (personnes, contextes, situations) en catégories symboliques (valeurs, croyances, idéologies) et leur confère un statut cognitif, permettant d’appréhender les aspects de la vie ordinaire par un recadrage de nos propres conduites à l’intérieur des interactions sociales ». Logicamente a mente não é uma “representação social’, neste sentido, mas não deixa de ser uma espécie de “representação” psíquica do processamento fisiológico do cérebro. Mas, insisto, não é “material”, mesmo sendo física. Além da matéria, o espaço, o tempo, a radiação, os campos, as estruturas e as ocorrências são também entidades físicas.

Epifenômeno

Como já disse, revi minhas afirmações anteriores de considerar a mente como "epifenômeno" do cérebro, após pesquisar com mais profundidade o conceito de "epifenômeno". Este é uma ocorrência que emerge das propriedades de do funcionamento de outras, mas se torna de uma nova natureza, incapaz de provocar alguma alteração em eventos que se dêem na estrutura da qual emerge. Se a mente e a consciência fossem epifenômenos, então seriam formadas pelo funcionamento do cérebro mas não atuariam sobre ele. Por exemplo, um raciocínio que leve a uma decisão seria processado todo no cérebro, mas sua percepção consciente se daria pela emergência para a mente. Todavia, a decisão tomada em função do raciocínio não seria feita pela mente e mandada de volta ao cérebro, para execução. O próprio cérebro é que faria isto. A mente seria, pois, uma espécie de "janela" pela qual se perceberia o funcionamento do cérebro, sem nada interferir. Em minha concepção de "ocorrência", a mente é ativa e é nela que se dá o processamento, pois isto é, justamente, uma ocorrência. Então a mente é algo natural, físico, não pertencendo a nenhuma outra categoria, mesmo não sendo material. A consciência e a autoconsciência são processos mentais.

A mente não é uma manifestação da consciência. A consciência é que é uma operação da mente. Não existe consciência sem mente e nem mente sem cérebro. O idealismo e as doutrinas espiritualistas, dentre elas o espiritismo, não possuem base factual nenhuma que as dê suporte. Mediunidade e experiência de quase morte não confirmam nenhuma realidade espiritual extrínseca ao organismo. Tratam-se de alucinações, análogas à esquizofrenia, quando não são puros embustes. O Universo não tem consciência nenhuma, tampouco os seres inanimados.
Quanto aos animais, sim, eles a possuem, em grau maior ou menor. Isto pode ser verificado em vários testes. Não é privilégio do ser humano possuir consciência e autoconsciência e mesmo consciência moral. Animais mais evoluídos sabem quando fazem coisas erradas. Eu vejo isto frequentemente em meus cachorros e cadelas. Primatas, golfinhos, elefantes e até papagaios a exibem nos testes.
A consciência não está em toda parte. Ela está apenas na mente de seres vivos animais com certo grau de complexidade. Não sei se insetos a possuem, mas os vertebrados sim, mesmo ratos. E, talvez, os cefalópodos, dentre os invertebrados. Quanto aos vegetais, penso que não, mesmo as plantas carnívoras.
É interessante notar que a consciência é função de certos setores do cérebro. Algumas lesões causam perda parcial da consciência, sem perda de outras respostas. Por exemplo, há casos de perda parcial da consciência da visão unilateral sem perda real da visão, pois testes mostram que a pessoa, sem saber que vê, consegue pegar um objeto para o qual está olhando. Isto é: a visão está preservada, mas a consciência da visão não. Ha também patologias da consciência da memória de certos fatos, sem perda da memória, isto é, a pessoa não se lembra conscientemente, mas age de acordo com a lembrança em questão.

Baleias e elefantes têm mais neurônios do que homens. Mas também têm mais células corpóreas, sendo a razão do número de neurônios por células corpóreas maior nos seres humanos. Além disto, não é só o número de neurônios que conta para a inteligência e sim o número de neurônios corticais, principalmente frontais e o número de sinapses, bem como a área da superfície do córtex, ampliada pelas dobras externas do cérebro. A consciência só atua no mundo exterior se alguma de suas operações desencadear uma ação motora do organismo que interfira no mundo. De outra forma não há como a consciência ou a mente agir sobre algo externo ao corpo que as abriga. Não existe transmissão de pensamento nem poder da oração ou força do pensamento positivo, exceto como um fator internamente estimulante para que a pessoa não desanime e aja positivamente para a obtenção do que deseja. Em suma, o livro "O Segredo" é a mais completa tapeação.

Consciência e complexidade

Se for possível fazer a conexão neural entre dois cérebros, quantas mentes e quantas consciências haverão? Minha resposta é: uma só! Explico: Mente e consciência não são entidades substanciais que tenham localização, extensão, massa, energia etc. São "ocorrências", acontecimentos, fenômenos, eventos. Não se "possui" uma consciência: "experimenta-se" estar consciente. Uma vez que sistemas biológicos ou eletrônicos capazer de gerar consciência se interconectam, a consciência que eles geram é única. É preciso diferenciar consciência de autoconsciência ("EU", ou EPP - experiência em primeira pessoa, como querem alguns). Consciência é a noção de se estar ciente do processamento mental. Note-se que isto é independente do processamento, mesmo uma percepção. Pode-se "ver" sem estar consciente do que se vê e, inclusive, agir em função desta visão (no sonambulismo, por exemplo). O mesmo se dá com memórias que não se consegue evocar mas que são usadas em ações que as requerem. Esta consciência não está especificamente localizada no cérebro. É importante frizar que a maior parte do processamento mental, inclusive raciocínios, é inconsciente. O afloramento do resultado desse processamento à consciência é que se pode chamar de "intuição" ou os "insights". Já a autoconsciência é uma consciência especial de si mesmo como algo distinto do resto do mundo, inclusive do organismo. Esse "eu" é o dono da mente e do corpo. Isto não é uma "entidade", mas uma constatação da mente, isto é, um processo, uma ocorrência, que é possível se perder. Há patologias de perda do "eu", sem prejuízo da continuidade da vida e mesmo de processos mentais, como memória e raciocínio. Só não se consegue perceber-se a si mesmo como algo distinto e individual. Daí se vê que a mente não pode ser gerada pela consciência e sim o contrário, já que a mente é mais abrangente, sendo a consciência um de seus aspectos.

É claro que estruturas físicas de suficiente complexidade são capazes de gerar mente e consciência, mesmo que não sejam biológicas. Nada há que impeça. O processamento neurológico que faz surgir a mente e, nela, a consciência, fundamentalmente é o mesmo de um ser vivo de menor complexidade, desprovido de consciência (ou, pelo menos de autoconsciência). É só uma questão de complexidade mesmo. O pessoal que pesquisa inteligência artificial já faz dispositivos (redes neurais) que aprendem e se autoregulam. Só que os dispositivos artificiais, constituidos de milhares de processadores em paralelo, são incrivelmente toscos comparados com o cérebro, mesmo de um rato. Então, dar consciência a um robô, é só uma questão de se adquirir a competência necessária.
Outra coisa que precisa ficar clara é que o "eu" não reside em nenhum espírito ou alma. É um acontecimento puramente neurológico.
Esse negócio apregoado pelo Amit Goswami, Fritjof Capra, Deepak Chopra e outros que tais, de que o pensamento influencia a probabilidade quântica de um evento, podendo determiná-lo é inteiramente gratuíto. Não é nada disso. Livros como "Quem somos nós" e "O Segredo", são uma completa enganação.
Só quero reforçar que não é o tamanho nem a densidade do tecido neurológico em relação ao resto do organismo que determinam o nível de inteligência ou consciência (sim: nível e não existência!), mas sim, justamente, a complexidade das conexões e da estrutura (arquitetura) de um modo geral. Reforçando também o caráter não linear, isto é, o todo não é a simples "soma" das partes, mas envolve retroalimentações, influências cruzadas, reforços de todas as potencias etc, etc.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Ensinando, Estimulando e Aprendendo Inteligência






Assisti, neste último domingo, pela Rede Minas de televisão, uma entrevista com o professor Pierluigi Piazzi, do Anglo de São Paulo, sobre o cultivo da inteligência como uma prática pedagógica importantíssima e relegada ao ostracismo na maioria das escolas. No You Tube você pode assistir sua palestra sobre o tema, em oito vídeos encadeados. Esta é uma tecla pela qual me venho batendo desde que comecei a lecionar, em 1968. O mais importante não é passar conhecimentos nem habilidades (que também têm que ser passados) mas desenvolver a inteligência. A escola é como uma Academia Mental. Na verdade, a maior parte do treinamento não é feito na hora da aula, mas na hora de estudo, fora da aula, em que o aluno se torna um estudante e faz a sua calistenia cerebral. Não estou descartando a necessidade da transmissão de valores éticos, estéticos, sociais, sentimentais e de outras ordens. O que insisto é que tem-se que parar de adotar o paradigma educacional de que estudar é absorver conhecimentos, que são as únicas coisas avaliadas nos exames. Isto é só uma parte, e minoritária, do processo ensino-aprendizagem. A aprendizagem de habilidades é outra com o mesmo nível de importância que os conhecimentos. E o desenvolvimento da inteligência é mais importante ainda que estes dois, do mesmo modo que a formação do caráter. Ainda vou tecer mais considerações sobre este assunto em futuras postagens.
O professor Piazzi é especialista e neuropedagogia e autor de três livros sobre o tema, publicados pela editora Aleph: "Aprendendo Inteligência", "Estimulando Inteligência" e "Ensinando Inteligência".

O privilégio de existirmos

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Meu amigo Marco Aurélio Machado, professor de Filosofia, hoje fazendo 45 anos, escreveu em seu blog "Universo da Filosofia", um texto muito apropriado para pensar sobre o grande privilégio de existirmos e o extremo valor que tem cada vida. No fim ele propõe que, ao acordarmos, pensemos: "SE TODAS AS PESSOAS DO MUNDO FOSSEM IGUAIS A MIM EM ATITUDES E SENTIMENTOS, ESTE MUNDO ESTARIA MELHOR OU PIOR? "

Que tal pensarmos todos nós assim todo dia?
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domingo, 10 de janeiro de 2010

Deus e a Física Quântica





Física Quântica e relativística é, simplesmente, Física, pois a natureza é quântica e relativística. E não tem nada de esotérico e de sobrenatural. Esta história de que a Física Quântica tem alguma coisa a ver com uma propalada “Consciência Cósmica” não tem fundamento. A Física Quântica não dá suporte nenhum para a crença na existência de Deus. Se grandes físicos foram teístas, outros tantos foram ateístas, e isto não conta contra nem a favor do teísmo nem do ateísmo. Argumento de autoridade é balela. O que importa são os fatos em si e não quem os contou. Tenho a mente aberta para toda e qualquer possibilidade, mas que sejam muito bem fundamentadas em evidências ou, pelo menos, em fortíssimos indícios. Ainda não vi nada disso no esoterismo quântico. Amit Goswami, Fritjof Capra, Deepak Chopra e outros que tais, pelo que posso inferir, são grandissíssimos enganadores.
Como a existência de Deus não é uma evidência sensorial primária, sua veritação precisa ser obtida por comprovação que se baseie em cadeias de comprovações que, na última instância, fundamentar-se-á em evidências sensoriais diretas, mesmo que auxiliadas por instrumentos. O ônus da prova recai sobre a comprovação de sua existência e não da inexistência. Assim, a priori, considera-se que Deus não exista, até que se prove que exista. Se não se provar que Deus existe, é para se supor que não exista, mas se não se provar que Deus não existe, não se pode considerar que exista, mas apenas que possa existir. Evidentemente, qualquer crença na existência ou inexistência de Deus, não se reveste de argumento a favor ou contra isto, mas, se for acompanhada de um elenco de fortes indícios, num ou noutro sentido, pode embasar a maior plausibilidade da existência ou da inexistência. Meus conhecimentos indicam a maior plausibilidade da inexistência, daí minha posição ateísta cética.
O fato de não se ter explicações naturais acabadas e inquestionáveis sobre questões ainda em aberto na ciência, como as origens do Universo, da vida e da consciência, não significa que elas não existam e que se deva, então, abandonar a busca de explicações naturais e aceitar as sobrenaturais. Inclusive porque as aventadas explicações sobrenaturais não explicitam os pormenores dos mecanismos do que se propõem a explicar, como se exige das explicações naturais. Considero muito mais gratuito e exótico introduzir a existência de Deus no processo explicativo, do que admitir que ainda não se sabe qual é a explicação. A Cosmologia, a Física, a Biologia e a Neurociência estão envidando ingentes esforços para chegar lá, e não se pode arguir que já houve tempo suficiente para isto, pois a espécie humana, a civilização e a ciência são extremamente jovens neste planeta.
A se usar de prudência, como recomendo, há que se deixar a questão em aberto e ficar sem a resposta, por enquanto e isto pode perdurar por muitas e muitas dezenas ou centenas de anos. Mas, a não ser que se obtenham provas cabais de que a explicação seja a interveniência de Deus, e que se mostre pormenorizadamente como esta interveniência se deu, além de se obter uma descrição completa e verificável das propriedades de Deus que não sejam meras “doxas” ou informações tiradas das suspeitíssimas “Escrituras Sagradas”, não me sinto capaz de aceitar Deus como explicação para coisa alguma.
Estou cansado de ver cientistas mostrarem que tal ou qual fenômeno não consegue ser explicado pelos conhecimentos atuais da Física ou da Biologia e, então, tirarem do bolso da casaca que “logo”, tem-se que considerar que a explicação é a interveniência de Deus. Posso até admitir que possa ser, mas de forma alguma, até agora, isto ficou comprovado. E, como já disse, o ônus da prova é este.
A sensação que se tem de que os pensamentos, sentimentos, emoções, lembranças, enfim, toda a vida psíquica residem “fora” do corpo, de fato pode levar a supor que exista uma entidade extra, a “alma” que fosse a sede do psiquismo, enquanto certas sensações, como dor, frio, coçeira e outras parecem residir no local de sua ocorrência no corpo. Isto é uma ilusão. Nem as sensações se dão no próprio lugar nem o psiquismo se dá fora do corpo. É no interior de cérebro que essas ocorrências se sucedem. Experimentos com portadores de lesões cerebrais e, atualmente, técnicas de imageria neurológica permitem localizar todas essas ocorrências, se bem que ainda não sejam capazes de identificar seus conteúdos. É uma questão de tempo e se chegará lá. O apelo a noções transnaturais, como a de “espírito” não se faz necessário. Acreditar que se possua alma porque se tem este sentimento não pode servir de base à comprovação de sua existência. Dizer que se precisa primeiro “crer” para então “ver” é uma incoerência. A crença é capaz de fazer ver qualquer coisa, como bicho-papão, papai-noel, fadas, duendes, saci-pererê e assim por diante. Dizer que se vê no que se crê não tem cabimento. Se for assim, tudo que se quiser que seja verdade o será, basta acreditar, como se proclama no famigerado livro “O segredo”.
Pretender achar o significado dos fenômenos quânticos em saberes mitológicos, para mim, de fato, é ingenuidade. Certamente que a Física Quântica e a Relatividade possuem um alto componente filosófico, se não formos pragmatistas, como muitos cientistas adeptos do positivismo. A ciência não deve apenas investigar “como” o mundo funciona, mas também, “porquê”. É válido se fazer um cotejo entre as interpretações da Mecânica Quântica e vários mitos, sob um aspecto crítico, mostrando as coincidências. Isto não dá aos mitos nenhum “status” de validade e nem se pode basear neles para construir as interpretações, que têm que ser gestadas por reflexão filosófica sobre as evidências observacionais das conclusões teóricas.
Há muitos indícios de que Deus não existe. Primeiro temos que descartar, de pronto a noção de que Deus seja onipotente, onisciente e bom, pois a existência do mal, de pronto, mostra que tal tipo de ser é contraditório e, logo, não pode existir, pois se ele tem o poder de evitar o mal e não o faz é porque não é bom. Fiquemos só com a onipotência e a onisciência. Isto é, Deus não é bom. Em suma, abandonemos o teísmo e fiquemos só com o deísmo e o panteísmo como nossas possibilidades.
Pelo Deísmo Deus apenas criou o Universo e largou de lado e pelo Panteísmo, Deus está impregnado no Universo. Nos dois casos é um ser com inteligência, vontade e sensibilidade, só que o deísta é extrínseco ao Universo. Na concepção deísta, o Universo teve um começo em que foi criado por Deus, que sempre existiu, mas não faz parte do Universo. Fora Deus, então não havia nada. O conteúdo do Universo não é parte do conteúdo de Deus, senão ele seria natural e integrado ao Universo. O problema de Deus ter feito surgir tudo sem que antes houvesse nada é semelhante ao do surgimento de tudo sem Deus nenhum, apenas que tem um agente causador, mas o conteúdo continua provindo de nada. E mais, se Deus é uma coisa que pode existir eternamente sem ter sido criado por ninguém, porque não o próprio Universo? Caímos no panteísmo, isto é, Deus é o próprio Universo. Só que um Universo com inteligência, vontade e sensibilidade, isto é, a tal consciência cósmica e o tal desenho inteligente.
Para haver a consciência cósmica seria preciso que existissem formas de intercomunicação direta e quase instantânea entre todas as partes do Universo. Pode ser que isto seja possível e existem estudos dessas possibilidades, ainda inconclusivos. Mas vejo dois problemas. O primeiro é que, na verdade, o panteísmo considera Deus não exatamente como o próprio Universo, mas como uma entidade “imanente” a ele, isto é grudada como um imã mas distinta, mais ou menos como se entende o corpo e a alma de uma pessoa. No deísmo, Deus não é imanente, mas extrínseco. Nos dois casos há o problema da natureza da substância de Deus não ser física, isto é, nem campo, nem matéria, nem radiação, e, ao mesmo tempo, interagir com o mundo físico. Ainda não se conseguiu observar este tipo de ocorrência. Outro problema é que o Universo não demonstra seguir uma evolução inteligente coisa nenhuma. Na verdade a evolução é bem caótica e completamente imperfeita. Porque existem doenças, por exemplo?
A haver algum Deus, a maior plausibilidade seria pela concepção deista, isto é, um ser onipotente responsável pela criação do Universo, mas não provedor contínuo de sua existência, deixada a cargo das leis que lhe regulam o funcionamento. Isto se estende à vida dos seres humanos, ou seja, orações seriam inteiramente inócuas. No entanto, mesmo nesta concepção, como sua existência não é evidente, há que se provar que exista. E não há prova alguma disso, pelo que eu conheça. A existência de qualquer modalidade de deus não é necessária para se explicar coisa alguma. Então, para que supor que exista?
Nem a Física Quântica nem a Relatividade proporcionam o mais leve indício de que exista alguma inteligência planejadora e ordenadora dos eventos da natureza. As denominadas “Leis Físicas”, não são determinações apriorísticas a serem seguidas pela natureza, mas sim, súmulas descritivas do comportamento observado nos fenômenos naturais. A noção de ordem, harmonia e beleza da natureza é improcedente. Singularmente há um prevalecimento da ordem e da beleza na região em que nos encontramos e na escala de dimensões espaciais e durações temporais a que temos acesso. Todavia no macro e no microcosmo, bem como na mini e na microbiosfera, domina uma situação extremamente belicosa e caótica, verdadeiramente horripilante. Germes e anticorpos permanecem numa infindável batalha, muitas vezes vencida pelos primeiros, redundando em doenças, que, por si só, mostram a imperfeição da natureza. Nos núcleos das galáxias a situação é de uma terrível predação de massas umas pelas outras, sem o estabelecimento de nenhum padrão de ordem. Isto acontece também no cinturão de asteróides. Mesmo num nível mais próximo do humano, nos oceanos e nas selvas, presas e predadores vivem em contínuo embate. Entre os insetos é o mesmo que se dá. Leis, como a da Gravitação Universal, que descrevem como os planetas orbitam o Sol, aparentemente produzem um funcionamento harmônico do Sistema Solar porque este é muito rarefeito e a ação do Sol sobrepuja enormemente a interação mútua entre os planetas. Mas isto não se dá no cinturão dos asteróides ou nos anéis de Saturno, em que o comportamento caótico predomina. A dinâmica da atmosfera é outro exemplo de que as leis na natureza não conduzem a harmonia nenhuma. Não estou dizendo que tudo é caótico. Existem sistema muito bem regulados, como os organismos vivos. Mas não são perfeitos, tanto é que existem doenças. Na vida social os conflitos interpessoais, o crime e a maldade deixam patente a imperfeição da denominada “criação”. O apelo à perfeição da natureza como testemunho da existência de Deus, portanto, não procede. Ou então tal entidade é incompetente, não possuindo os atributos de onipotência e bondade que lhe são conferidos.

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