quinta-feira, 16 de abril de 2020

FILOSOFIA



A Filosofia é erroneamente considerada por muitos como uma ciência humana. Ela não é uma ciência, mas uma metaciência. Abarca tudo o que pode ser cogitado pelo intelecto, seja ou não conhecimento científico. Em se tratando de ciência, abrange todas: exatas, biológicas, geológicas, humanas, sociais e o que mais seja, além de se dedicar à consideração de toda e qualquer atividade, cognitiva ou não, como o trabalho e os relacionamentos. Cuida também das linguagens, dentre elas a matemática, dos valores, do sentir, do agir e do fazer, como no caso das artes, a par do pensar e do falar. O filósofo, logo, tem que ser possuidor do mais vasto e eclético cabedal de saberes, não tão superficial assim, além de, é claro, dominar com maestria seu "métier" filosófico propriamente dito. Assim ele não é, absolutamente, um profissional da área humanística, mas de todas as áreas.

Filosofia é um complexo que engloba uma atitude, uma atividade, um corpo de conhecimentos e uma arte. É a atitude de ser sempre questionador, é a atividade de refletir sobre a realidade, é o conhecimento que esta atitude e esta atividade produzem e a arte de proceder a esse afã e bem usar seu resultado. O conhecimento filosófico não é vulgar nem científico porque vai além, uma vez que é crítico. A Filosofia não prescinde da ciência, mas a supera, pois, inclusive, discute sua própria validade e traça as diretrizes de como fazê-la. Filosofar, mais do que citar filósofos, cujo estudo, sem dúvida, é de alta relevância, é assimilar tudo o que disseram para formular as próprias considerações e formar a visão pessoal de mundo, que, a todo o momento, vai sendo reconstruída.

 Filosofar é debruçar-se sobre a realidade em todos os seus aspectos (lógico, matemático, geométrico, físico, astronômico, cosmológico, geológico, químico, biológico, psíquico, social, econômico, ético, político, cultural, artístico, linguístico, científico, tecnológico, metafísico, espiritual e qual outro seja); assimilar seu conteúdo, refletir sobre ele, informar-se o máximo possível sobre o que já disseram filósofos, cientistas, literatos, a humanidade enfim, e daí tirar suas próprias conclusões, contestando o que se considerar incorreto; formular conceitos que descrevam de forma adequada a realidade assimilada, delimitando sua esfera de aplicabilidade; fazer levantamentos e experimentos no que for pertinente e possível, para verificar as relações existentes entre aquilo que os conceitos representam nas várias categorias existentes; formular hipóteses que proponham explicações para as relações obtidas; deduzir consequências a partir dessas hipóteses; testar a validade e veracidade das conclusões achadas, reformulando as hipóteses, caso as conclusões não se adequem à realidade e articular argumentos que defendam o resultado concluído e sejam capazes de se opor às explicações alternativas existentes e verificadas errôneas. Procurar as palavras mais adequadas, analisar sua semântica, suas limitações de aplicabilidade e expressar as conclusões em um linguajar acessível não apenas ao especialista, mas à pessoa comum, com certo grau de cultura. Antes de qualquer afirmação, porém, é preciso dizer em que sentido cada palavra está sendo empregada, pois grande parte das discussões filosóficas é puramente semântica. Essa é a metodologia científica que proponho seja também aplicada à Filosofia, para que esta deixe o patamar de uma esfera de conhecimentos baseada em pontos de vista pessoais e se coloque como um corpo objetivo do saber, independente de escolas de pensamento.


Nisso tudo, é mister ter desenvolvido os conhecimentos, habilidades e competências filosóficas que o estudo formal propicia. Mas é preciso ir além do costume de se fazer apenas o estudo crítico da produção filosófica de algum autor ou escola e ter a ousadia de propor sua contribuição pessoal, ou mesmo, quem sabe, criar uma escola. O ideal é que a Filosofia se dispa de qualquer rótulo, escola ou adjetivação, isto é, que se apresente em toda beleza de sua nudez, pois assim é que poderá ser admirada em sua verdade e esplendor.

Deleuze está certo, em parte, pois filosofar não é apenas construir conceitos. Certamente que isso é um dos mais importantes aspectos da Filosofia, mas não é o mais importante. Os conceitos são arbitrários. Um conceito é uma atribuição de significado a um significante, limitando-o de forma a se saber a que se aplica e a que não se aplica. Isso é necessário para se fazer uma imagem representativa da realidade, em todos os seus aspectos, para que se possa discorrer sobre ela com o uso da linguagem, que é a única maneira racional de se poder fazer compreender o modo como se apreende essa mesma realidade. Mas o fundamental é investigar as relações que aquilo que esses conceitos significam guarda com todo o resto, no mundo real objetivo. O cerne da Filosofia é justamente refletir e especular sobre essas relações e propor modelos mentais que as representem em termos dos conceitos formulados. Mas é preciso se proceder a uma verificação fatual ou a uma comprovação lógica, que, em última instância se baseia em evidências fatuais, que valide as hipóteses formuladas, na realidade objetiva do mundo. Não me refiro apenas ao mundo natural, mas também ao mundo das abstrações, das normas, dos valores. Quando Kant postula a existência de juízos sintéticos a priori, é preciso entender o que ele quer dizer com “juízo”, “sintético” e “a priori”, para compreender o significado disso. Mas não só. É preciso investigar se, de fato, existe tal tipo de coisa. Isto é, construir a Filosofia, que precisa adotar critérios científicos de validação de suas proposições. Assim ela se libertará da existência de escolas de pensamento e se tornará uma disciplina que descreva as razões primeiras e necessárias de tudo o que existe, qualquer que seja a ordem considerada. Nisso se inclui lógica, ética, estética, epistemologia, política e, inclusive, metafísica, que não é nada famigerada, até mesmo em seu capítulo principal, a ontologia.

Ao filosofar, o importante não é citar quem disse isso ou aquilo, mas debater o que é dito, não importa por quem. Ler muitos textos de vários filósofos, concentrando-se no conteúdo. Então fazer uma apreciação das diferentes abordagens e explicações de dado fato e tirar a conclusão pessoal, procurando refutá-la para ver se é suficientemente bem estabelecida. Depois, buscar argumentos que a possam defender. Nesse processo, certamente que se usa bastante a intuição, mas é preciso munir-se de argumentos lógicos. O que não é importante é saber se a conclusão segue tal ou qual corrente de pensamento. A Filosofia precisa se despir de adjetivos e procurar chegar a um consenso, como o fazem muitas ciências, inclusive quanto às definições dos termos empregados. Por isso, antes de se iniciar qualquer discussão, os debatedores precisam fazer um acordo sobre o que estão entendendo por cada palavra. Se não houver consenso, que sempre se mencione em que acepção o termo está sendo usado.

A Filosofia, contudo, é muito mais do que um empreendimento destinado a compreender o mundo: É uma proposta de vida, uma mestra que exerce uma função, muitas vezes assumida pelas religiões, mas muito mais bem executada pela Filosofia, que é a de propiciar um modo de apreender a realidade e de fazer face a ela de forma a conduzir a vida com proveito, sentindo-se assim realizado e pacificado consigo mesmo. De manter a mente sempre aberta, inquiridora e questionadora, sem servilismo de qualquer natureza a qualquer ideologia, credo ou facção, comprometido apenas em descobrir e fazer prevalecer a verdade, não importa a quem ou a que possa incomodar. De pautar toda ação por esse compromisso, em benefício da maximização da felicidade para o maior número de seres, quiçá em detrimento do proveito pessoal. Enfim, de levar a vida de forma virtuosa, por seus sentimentos, pensamentos, comportamentos, opiniões, atitudes, posições e obras, jamais sendo omisso, pois sempre se tem a ver com tudo aquilo de que se toma conhecimento.

Isso é o sentido primário da Filosofia, isto é, a busca da sabedoria. Considero que intelectual não seja apenas uma pessoa que domine vastos conhecimentos. Um médico, um engenheiro ou um empresário podem dominar vastos conhecimentos sem serem intelectuais. O intelectual é aquele que tem conhecimentos mais teóricos e consegue correlacionar o saber de sua área específica com as demais áreas do conhecimento humano. O passo seguinte é ser um erudito, isto é, quem domine seu campo de saber em profundidade e abrangência superlativas. Erudição consiste, justamente, em se entender tão ampla e profundamente de um assunto que se seja capaz de argumentar, articular o pensamento, persuadir, expor uma ideia, desenvolver um raciocínio, sempre com grande embasamento e traduzi-lo de uma maneira inteligível para públicos de diferentes níveis e áreas de conhecimento. Um polímata é um erudito em variados campos de conhecimento.

Já o filósofo se caracteriza principalmente por ser uma pessoa que reflete e questiona. Normalmente ele deve ter conhecimento de Filosofia e História da Filosofia, e, portanto, ser um intelectual, mas não necessariamente. Alguém pode ser um filósofo sem que seja intelectual e nem todo intelectual será um filósofo. Uma característica do filósofo é seu amor e sua busca pelo saber e, mais que o saber, pela sabedoria. Erudição e sabedoria são, certamente, conceitos bem distintos, como já está mais que provado. Existem dois conceitos de filósofo. Um amplo e um restrito. Segundo o amplo, filósofo é todo aquele que se debruça sobre a realidade para refletir, questionando e buscando respostas, mesmo que não as ache. Assim, não se requer nenhum tipo formal de estudo para ser-se filósofo, na concepção ampla. Na concepção restrita, um filósofo é um profissional, com diploma universitário, mestrado e doutorado na área, detentor de um amplo e profundo conhecimento de tudo o que trata a Filosofia e do que disseram os grandes filósofos, aliado à habilidade de, ele próprio, fazer uso das ferramentas de raciocínio para construir sua visão da realidade, com a devida competência retórica e pedagógica para expô-la didática e convincentemente ao público. Todavia, há casos em que a pessoa, mesmo não tendo treinamento formal em Filosofia, se dedica a seu estudo e à elaboração de propostas filosóficas de forma bem embasada, argumentada e articulada, de tal sorte que pode ser dita filósofa na acepção restrita. Isso ocorreu com vários pensadores na história da Filosofia.

Em sua origem, a Filosofia era a busca da sabedoria, mais que do saber. O filósofo é o amante da sabedoria. E sabedoria é como bem conduzir a vida, em harmonia com o outro e a natureza. De tal modo que se propicie a própria felicidade e a do outro.

Ser filósofo é, pois, saber como viver. Filosofar é, principalmente, refletir sobre a vida e o Universo, procurando encontrar o sentido, a razão, o propósito de tudo o que existe. Nisso se aplica a inteligência, com grande proveito. Mas o que se vê, inclusive nos cursos de Filosofia, é uma busca de erudição vazia, um acúmulo de informações sobre tudo o que disseram os filósofos, mas, nem sempre, de modo a usar todo esse conhecimento na construção da vida. Filósofo é aquele que filosofa e não o que sabe tudo o que os filósofos disseram. Parece que os cursos de Filosofia optaram por não formar filósofos, mas apenas “entendidos em Filosofia”. É preciso romper com isso e ter a coragem de possuir e expressar suas próprias ideias, de contestar os filósofos por si mesmo e abrir a mente para todas as possibilidades. Isso é sabedoria, desde que seja acompanhada do testemunho da própria vida.

Chego, agora, ao sentido original da Filosofia, que é a busca da sabedoria. Sábio é aquele que usa o conhecimento que tem, que pode ser muito ou pouco, sua inteligência, sensibilidade e vontade, de modo proveitoso e adequado, isto é, de forma a acarretar a maximização da felicidade do maior número de pessoas e, em tudo, ser justo, equitativo e respeitoso do direito alheio, inclusive dos seres irracionais e inanimados. Principalmente, é quem age sempre colocando a bondade como primeira prioridade. Sim, porque ser bom é mais valioso do que ser justo e honesto, pois o justo e o honesto podem ser frios e calculistas, mas o bom é sempre justo e honesto, e, portanto, sábio. Se o sábio for também erudito então temos a pessoa humana com as melhores qualidades que se pode encontrar, pois ela será também modesta e virtuosa em todos os outros aspectos. É o ideal do filósofo da Grécia antiga ou do “santo” dos primeiros cristãos. Isso não significa que seja casmurro. Certamente o verdadeiro sábio é alegre e jovial.

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