quarta-feira, 23 de julho de 2008

Alguns Conceitos Ontológicos

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Vou tecer algumas digressões sobre meu entendimento do assunto, sem citações de autores, mas, certamente, tudo o que eu disser provém do que já li e estudei, devidamente assimilado, intercotejado, repensado e concluído, sem contudo, pretender ser definitivo. A Filosofia não é apenas a formulação de conceitos mas, certamente, isto é um de seus aspectos fundamentais. A Ontologia é, assim, a disciplina que cuida da categorização dos termos usados na Filosofia, enquanto a Metafísica, busca a relação que o que tais termos significam mantêm entre sí. O conceito mais genérico que vejo é o de “algo” referente a tudo que puder ser concebido, de qualquer espécie, existente ou não, que se possa associar gramaticalmente a um substantivo, um pronome, um numeral. Assim um corpo físico, uma norma, um valor, uma figura geométrica, um sentimento, um espírito, tudo isto é algo. Já uma ação, uma conexão, um modo, uma qualidade, isto é, categorias que sejam expressas por verbos, verbos de ligação, conjunções, preposições, advérbios e adjetivos não são “algo”. Uma cor, um odor, não são algo.

Algo é um “ente” se ele existe ou possa existir objetiva ou conceitualmente associado a coisas concretas. Um objeto, uma figura, um número são entes, mas um valor ou uma norma não são entes. Um unicórnio e um anjo são entes, mesmo que não existam. Um ser é um ente que, de fato, existe, não apenas como conceito, mas na realidade objetiva, fora de uma mente que o conceba. A essência de um ente é a especificação das características que o tipificam como tal, sem as quais ele não é aquele tipo de ente. Existir é essencial ao ser. Um ser que possua consciência mental é uma pessoa, caso contrário é uma coisa. Um corpo é um ser do mundo físico, constituído de matéria.Um objeto é um corpo com extensão espacial definida.

É importante precisar estes conceitos de forma que se possa falar deles sem ambiguidade. Esclarecendo minha noção de ente: Quando disse “coisas concretas” o que eu estava querendo dizer é que ente é algo que corresponda ao que existe objetivamente ou possa existir como tal mesmo que não exista, mas não seja uma abstração. Isto não significa que seja material ou físico. Deus é uma entidade pois é algo que, conceitualmente, poderia existir. Da mesma forma o unicórnio. Números, figuras geométricas, grandezas físicas também são entes pois possuem uma existência representativa em entidades objetivamente existentes. Já os valores, como beleza, bondade, verdade, preço, utilidade, não são entes. Assim também as leis, as normas, os códigos, não são entes. Mas espíritos são entes. E se, de fato, existissem, seriam seres. A noção que diferencia o ser do ente é a realidade objetiva, que não é, necessariamente, física. Um ser é um ente que existe objetivamente. Real é tudo o que existe, objetiva ou conceitualmente, seja algo ou não. A realidade objetiva é a existência fora da mente. Um quadrado redondo não é real pois não existe nem conceitualmente. Um unícórnio pode ter uma realidade conceitual, mas, de fato, não existe objetivamente, logo não é um ser, mas é um ente.

Note-se que minha noção de filosofia não se prende ao ser humano. Os conceitos de “ser aí” (dasein) ou outros de Sartre e Heidegger, para mim, não têm significado filosófico importante. O homem é só uma dentre as inúmeras espécies de seres vivos que, por enquanto, é a única consciente que se conhece. Mas não é nada especial, exceto pelo fato de nós sermos pertencentes a ela.

Vou me referir a causas, princípios, razão e propósito do ser e não do ente, pois o ser é o ente que existe e não vejo sentido em buscar a causa, o princípio, a razão e o propósito de algo que não exista. Bom… pode ser até que haja. Nisto é que a Metafísica se distingue da Ontologia. A Metafísica busca essas respostas, enquanto a Ontologia só categoriza e define. A Metafísica está para a Ontologia assim como a Dinâmica está para a Estática. Uma diz o que é, outra como funciona. E, então, não se pode dissociar a Metafísica da Cosmologia e da Física. Mesmo que se entenda que a Metafísica busca as razões além da Física, elas estão ligadas às razões físicas. Daí que vejo a necessidade de que todo filósofo (como o eram os gregos), também sejam físicos, ou que, pelo menos, tenham um bom entendimento conceitual de Física (e de biologia também).
Isto porque, no meu entendimento, não há realidade sobrenatural, isto é, a razão de ser de todos os seres está na própria natureza. E não é verdade que a Física procura saber apenas “como” a natureza funciona, sem se preocupar “porquê” e “para quê”. Todavia, chega-se a um ponto em que a razão extrapola o domínio da Física, então entra a Metafísica. Digo extrapola não dizendo que a razão não possa ser natural, mas que o método de investigação físico não consegue ser aplicado. Isto, absolutamente, não significa que a Metafísica trate de entidades sobrenaturais ou que ache suas explicações fora da natureza.

A investigação metafísica se fará, então, não por experimentos ou observações, mas por especulações racionais e reflexão sobre o que os dados empíricos fornecem à mente. Todavia, mesmo assim, suas conclusões precisam passar pelo crivo do teste e da comprovação, delas deduzindo consequências que possam ser testadas no confronto com a realidade. É nesse sentido que digo que a Filosofia precisa ser encarada sob um ponto de vista mais científico. Não por conta de seu objeto de estudo e nem por causa do método de investigação, mas por ter um compromisso com a verdade. E como a verdade é única, mesmo que não se consiga atingí-la de imediato, há que se buscar aproximações cada vez maiores, de modo que desapareçam as “escolas” de pensamento e se atinja uma convergência de visões da realidade para uma visão que deverá ser única, por ser a verdadeira. Não é possivel que todas as escolas filosóficas sejam igualmente corretas, de vez que, em muitos aspectos, elas divergem radicalmente em suas concepções. É o que se dá com as religiões, a psicologia, a sociologia e a economia, por exemplo. Se uma das correntes de pensamento estiver certa nessas disciplinas, as que lhe sejam divergentes, no aspecto considerado, estarão erradas. Possivelmente todas podem estar erradas, como penso que se dá com as religiões. O que decidirá? O confronto com a realidade.
Por isso é preciso se debruçar de modo isento no estudo de todas as correntes filosóficas e procurar extrair delas o que possam ter de verdadeiro, sem se aferrar incondicionalmente a nenhuma, na busca da filosofia plena e sem rótulos.

Os indícios de que existe uma realidade exterior à mente são muito grandes para que eu possa desconsiderar o solipsismo. Caso alguém insista neste ponto, seria melhor abrir um tópico à parte. Parto, pois, do princípio de que o mundo existe fora de mim, mesmo que eu não existisse ou que nenhuma mente existisse para percebê-lo. Outro fato que se pode depreender é que esta existência não é necessária, isto é, que poderia não existir. Tal conclusão pode ser inferida da observação de seres que deixam de existir, bem como daqueles que passam a existir. A ocorrência fundamental que se dá com um ser é, pois, a passagem da não existência para a existência. Entende-se por existência o fato de estar presente no mundo exterior a qualquer mente. Não estou dizendo que tenha que existir em algum lugar e ao longo de uma série de momentos. É possível se conceber a existência real fora do tempo e do espaço, como seria a de espíritos. Todavia tenho argumentos contra esta possibilidade concreta.

Dentre as categorias de causas elencadas por Aristóteles, a única que, de fato, considero como “causa” é a dita “causa eficiente”, que é a razão pela qual um ser passa a existir, sem a qual não existiria. Para que tal causa possa concretizar-se, certamente há condições a serem preenchidas, mas, exceto para seres concebidos e projetados por outro ser inteligente, não há propósito para a existência de seres na natureza. Quero analisar essas duas questões.

Primeiramente, não é verdade que a passagem da inexistência para a existência tenha que ter alguma razão. Ela pode se dar de modo fortuito, expontâneo e casual, isto é, sem causa. O ”Princípio da Causalidade”, isto é, a afirmação de que todo evento experimentado por um ser tenha uma causa é algo que se induz (e não se deduz) a partir da observação de numerosos casos particulares em que isto é verdadeiro. Um raciocínio indutivo, contudo, não é nunca garantido. Basta um contra-exemplo para derrubá-lo. De fato, existem míriades de contra-exemplos, isto é, de eventos que não são efeitos na natureza. Ocorre que eles não são acessíveis à percepção humana direta por estarem fora da escala de dimensões e tempos perceptíveis pelos sentidos naturais do homem, pois se dão na escala sub-atômica. Experimentos sofisticados, confirmam as previsões da mecânica quântica sobre, pelo menos, dois tipos de ocorrências incausadas. A primeira é a emissão de luz por um átomo excitado ao decair para seu estado fundamental (que é como todas as fontes emitem luz) e a segunda é o decaimento de um isótopo radioativo. A excitação é condição e não causa do decaimento. Ele pode ocorrer a qualquer momento ou nunca, sem nada que determine que se dê. Só se tem informação sobre o tempo médio de decaimento (ou a meia-vida, conceito correlato). As interpretações que procuram preservar o princípio da causalidade (inclusive defendido por Einstein), como a das “variáveis ocultas”, de Bohm, se revelaram errôneas. Assim é falso de que todo evento seja um efeito, logo a causalidade não é necessária.

Se a causalidade não é necessaria para algum ser existir (como os fótons de luz), então é possivel que ela também não seja necessária para a existência da totalidade de tudo o que existe, isto é, do Universo. Portanto pode-se admitir que o surgimento (veja-se que não digo “criação”) do Universo possa perfeitamente ser um evento que tenha se dado sem razão de ser alguma. Mas não estou dizendo que assim o foi, e sim que pode ter sido. Não há uma necessidade de haver uma razão para a existência do Universo. Por extensão também, pode-se inferir que qualquer coisa não precisa ter razão para existir, mas pode ter. Há que se investigar cada caso. Isto não contraria nenhum princípio estabelecido.

A outra questão é a do propósito. Isto é, para que existe tudo o que existe? As explicações teleológicas eram comuns em Biologia. A Teoria da Evolução derrubou-as completamente. Nenhum ser vivo evolui a partir de outro ou nenhum órgão de nenhum ser vivo se desenvolveu com algum propósito. Seu surgimento se deu por mutação aleatória. E sua fixação e permanência se deu porque ele se revelou mais eficaz para a sobrevivência daquele organismo em seu ambiente externo e interno (de seus parasitas, que sempre querem dar cabo dele). Se isto é observado na esfera biológica, tanto mais é verdade nos seres inanimados. As galáxias, estrelas, planetas, rochas, continentes, oceanos e toda a realidade mineral foi formada por mera conjunção de fatores inteiramente cegos e sem o mínimo propósito. É o que se observa a cada dia, não só astronomica, como também geologicamente. Em resumo, o Universo, o mundo, a vida e nós mesmos existimos sem finalidade alguma. Estamos aqui porque surgimos e pronto.

Ainda quero comentar mais dois outros princípios antes caros aos filósofos, que a Física derrubou. O primeiro é o do determinismo, que diz que, dadas as mesmas condições, uma mesma causa produzirá o mesmo efeito. Não é verdade. O comportamento da natureza não é deterministico e sim probabilístico. Isto pode ser perfeitamente demonstrado por uma experiência de difração de elétrons em que se tenha um elétron de cada vez passando por um aparato de duas fendas. Qualquer livro de Física Atômica descreve este experimento e qualquer um, tendo o equipamento, pode reproduzí-lo. Há grandes controvérsias sobre as interpretações da Mecânica Quântica, mas nenhuma das explicações que pretendem preservar o determinismo se revelou consistente com os dados experimentais em todos os aspectos. A interpretação probabilística do comportamento da natureza é a que prevalece.

Aliás é nela que se pode fundamentar a existência do livre arbítiro, de um ponto de vista reducionista. Se fosse prevalecer o determinismo Laplaceano, existiria destino, isto é, como queria Calvino, tudo seria pré-determinado: “Maktub”!

Outro caso é o da procedência, isto é, de que tudo o que existe tenha que provir de algo que previamente já exista. Tal fato é consignado na lei de conservação da massa-energia (uma extensão da “Lei de Lavoisier” da Química, levando em conta a Relatividade). O surgimento de algo sem que seja proveniente de algo pré-existente (isto é , surgir “do nada”) é uma possibilidade considerada seriamente na Física (a expressão “surgir do nada” é inadequada).
Para sustentá-la é preciso entender o “Argumento Kalam” que é a premissa maior da prova da existência de deus pelo “motor primo” feita por Aristóteles, que, contudo, falha pela invericidade de sua premissa menor.

De fato, a filosofia precisa extapolar do homem e ver a realidade de uma forma global. Por acaso, no momento presente e neste planeta, somos a única espécie com nível de consciência e inteligência capazes de filosofar (mas isto é só questão de grau, não somos qualitativamente diferentes dos outros animais). Mas outras já houveram, como o Neanderthal que, se não tivesse sido extinta, atualmente seria nossa espécie companheira, compartilhando e talvez competindo pelos recursos do planeta, muito provavelmente com nível de inteligência e consciência idênticos ao nosso. E não seria a nossa espécie. Como chimpanzés e bonobos, ou tigres e leões. Além disso é muito provável que, no futuro, novas espécies tão inteligentes como a nossa venham surgir e que a nossa própria evolua para novas, cada vez mais inteligentes. Temos menos de um milhão de anos neste planeta. Como serão as coisas daqui a cem milhões de anos? Por outro lado, a existência de vida inteligente em outros planetas é uma possibilidade. Então o homem não deve ser a única espécie inteligente, mesmo que, atualmente, se tenha reduzido bastante o cálculo de possíveis planetas com seres inteligentes, talvez menos de três por galáxia (cada galáxia tem centenas de bilhões de estrelas). Mas como existem centenas de bilhões de galáxias também…O que considero é que a filosofia deve buscar verdades universais e não apenas humanas, mesmo que sejamos humanos e, portanto, tudo que seja humano nos seja de grande importância. Mas precisamos relativizar nossa importância no conjunto da natureza. Tudo é imbrincado e o homem tem que viver em harmonia com o resto da natureza. O Universo não existe em função dele. Aliás, não dá a mínima para ele.

Um comentário:

Cássio disse...

Quanto à causalidade:

Uma vez que o comportamento da natureza é probabilístico, e o que se observa, comumente, é a causalidade, com poucos exemplos que fogem a isso, não seria “mais provável” a hipótese de que o surgimento do Universo seja um evento que tenha se dado com alguma razão?

O raciocínio indutivo, apesar de menos “garantido” que o dedutivo, oferece “pistas” da realidade. Na falta da possibilidade de se aplicar a dedução, não estaríamos mais próximos da verdade ao considerarmos estas “pistas” do que as ignorando completamente? Na falta de comprovação de ambos os lados, não é temerário considerar, como verdadeira, a hipótese de menor incidência estatística?

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