quarta-feira, 30 de julho de 2008

Considerações sobre o Tempo



.

O tempo e a poesia da ciência

Richard Dawkins, em sua brilhante obra “Desvendando o arco-íris” comenta que o poeta inglês Keats havia dito que Newton tirara toda a poesia do arco-íris, ao decompô-lo em suas cores primárias pelo prisma. Ao se iniciar a corrida espacial, no carnaval de 1961, Ângela Maria estourou com a marchinha “A Lua é dos Namorados”, de Armando Cavalcanti. Em geral há um sentimento de que a ciência tira a poesia do mundo ao explicá-lo. Nada mais incorreto. Pelo contrário (e o livro de Dawkins exatamente se dedica a demonstrar isto), o entendimento mais profundo dos maravilhosos mecanismos da natureza é que nos enche de deslumbramento e, mesmo, de um sentimento de enlevo, ao nos percebermos partícipes desta exuberância que é o Cosmos. E, nisso tudo, está o tempo. Estamos inseridos nele, como tudo o mais. Há uma imbricação impossível de ser demolida entre tempo, espaço, matéria, energia, existência, vida e consciência e, em decorrência, tudo o que é produzido pelo pensar e fazer humanos, como a poesia e a música em especial, que são as artes cujo objeto se desenvolve no tempo e não no espaço. Assim, um entendimento dos fundamentos físicos do tempo talvez nos faça poder apreciar ainda mais a beleza de tudo o que a literatura já produziu sobre o tema. É o que intento desenvolver em seqüência, num linguajar que acredito acessível ao não especialista.

Espaço e tempo

Em primeiro lugar é preciso entender que o espaço e o tempo não são elementos aprioristicamente estabelecidos sobre os quais se assenta o conteúdo substancial do Universo, que são os campos e suas concentrações (a matéria). Se o Universo teve um começo (pode ser que não, isto é, que sempre existiu), então, neste começo também se deu o surgimento do tempo e do espaço com o seu conteúdo (isto é, tudo!). Não há sentido em se questionar o que havia antes porque, simplesmente, não havia “antes”. O tempo não existia (nem o espaço). Não existe espaço sem conteúdo e nem tempo sem movimento. Espaço é uma capacidade de caber algo, isto é, o conjunto dos lugares possíveis para algo estar. Vácuo é um espaço sem matéria, preenchido só por campos. Isto existe. Mas vazio, isto é, um espaço sem coisa alguma, não existe no Universo. O conceito físico de “nada” é o da ausência de tudo, inclusive de espaço e tempo. Antes de existir o Universo não existia nada. Só para ficar claro, o conteúdo do Universo é o “campo”, uma entidade cujas concentrações constituem as sub-partículas formadoras da matéria e cujas alterações promovem as interações entre as partículas, responsáveis por tudo o que ocorre (inclusive o pensamento). O campo e a matéria possuem atributos, como energia (ou massa, outra maneira de concebê-la nas concentrações), carga, movimento, rotação, torção e outras. Na concepção fisicalista e reducionista (que advogo), não se faz necessária a interveniência de qualquer tipo de entidade extrínseca ao Universo físico (algo como espírito) para explicar seu surgimento, sua evolução e sua estrutura (nela incluída a estrutura da mente e o psiquismo). Passemos, pois, ao tempo.

A gênese do espaço e do tempo

Se no Universo só houvesse uma única partícula, todo o espaço seria apenas esta partícula. E como ela seria necessariamente imóvel (pois movimento é uma mudança de posição relativa e não haveria outra coisa em relação à qual a posição da partícula pudesse mudar). Além disso, partícula, por definição, não possui estrutura, de modo que não pode se deformar nem girar. Então nada se alteraria. Havendo uma segunda partícula, tudo muda de figura. Elas podem se aproximar ou se afastar. Pode haver, pois, mudança na configuração e no estado do Universo, isto é, das duas partículas. Surge aí o espaço e o tempo, pois podem existir localizações variadas para uma partícula em relação à outra e, havendo alteração, podem ser caracterizados momentos, como a propriedade que indica cada diferente situação. O fundamental disso tudo é que o espaço e o tempo não precedem o conteúdo do Universo, mas surgem com ele, em razão da dinâmica do seu estado (entende-se por configuração a disposição dos elementos de um sistema e por estado o modo pelo qual esta configuração se estabelece, isto é, a condição de sua evolução). Outra descrição, mais correta, é feita, não em termos de partículas, mas do campos. Enquanto o campo do Universo todo é inteiramente homogêneo e imutável, o tempo não passa. Uma vez que ocorram alterações em sua densidade, podem-se caracterizar estados distintos, isto é, há mudança (ou movimento, no sentido mais amplo do termo) e, logo, momentos, isto é, tempo. No Universo real, na verdade, desde sua formação, miríades de concentrações e rarefações se formaram, modificando-se, surgindo o espaço como a coleção de todos os lugares preenchidos pelo campo e o tempo, como a coleção dos diferentes momentos.

O sentido do fluxo do tempo

Uma característica fundamental do tempo é que, sendo uma coleção de momentos (como o espaço é uma coleção de lugares), esta coleção é ordenada, isto é, dados dois momentos distintos, um deles é anterior e o outro posterior. Este ordenamento é estabelecido por uma propriedade chamada entropia. A entropia é definida pelo logaritmo da probabilidade do estado macroscópico. O estado macroscópico é descrito pelas variáveis globais que o caracterizam, enquanto o estado microscópico é definido pela coleção de todas as variáveis de cada partícula constitutiva. A um dado estado macroscópico pode corresponder um número extremamente grande de estados microscópicos. A razão do número de estados microscópicos correspondentes a um dado estado macroscópico para o número total de estados microscópicos possíveis é a probabilidade daquele estado macroscópico. O logaritmo disto é a entropia. Pois bem, o tempo flui no sentido em que a entropia aumenta. A evolução do estado do Universo se dá do menos provável para o mais provável.

A quantização do tempo

Outra coisa interessante a considerar é se o fluxo do tempo é contínuo ou discreto (isto é, se dá-se por saltos). Imagine que, no Universo inteiro, cessasse todas as alterações, todo o movimento. O estado do Universo permaneceria inalterado. Elétrons não girariam em torno dos núcleos, a luz cessaria de se propagar, os astros interromperiam seus movimentos orbitais, objetos estacionariam a sua queda, corações não bateriam, os pensamentos ficariam suspensos. Então não haveria passagem do tempo. É como se fosse um filme cuja projeção se interrompesse. Assim que tudo voltasse a prosseguir, o fluxo do tempo seria restaurado e aquela interrupção não poderia ser detectada absolutamente por nada. Quem sabe isto já não ocorreu um sem número de vezes desde que você iniciou esta leitura. A quantização do tempo é, pois, uma coisa que, exista ou não, não faz diferença. A Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica supõem o tempo contínuo. Mas não uniforme e absoluto.

A medida do tempo

Se o tempo flui, é possível medí-lo, isto é, dizer o quanto de tempo se passou entre dois dados momentos (momento ou instante, no tempo, é como o ponto na reta, enquanto duração ou intervalo e como o comprimento do segmento de reta, que é o pedaço de reta existente entre dois pontos distintos, pertencentes a ela). Medir é comparar grandezas de mesma espécie, dizendo o quanto uma contém da outra. Para medir intervalos de tempo há que se tomar um deles como termo de comparação, denominado “unidade de tempo”. Uma propriedade a ser exigida da unidade é a sua reprodutibilidade, isto é, deve-se poder sempre obtê-la novamente com a mesma grandeza. Para o tempo isto é um problema, pois é impossível, uma vez decorrido certo intervalo, voltar atrás para conferir se outro intervalo é igual a ele. Então é preciso considerar que o novo intervalo seja igual, por definição, sem conferir. Para isto são usados fenômenos ditos periódicos, isto é, que voltam sempre a se repetir. Por exemplo, os dias, o ano, as batidas do coração ou o balançar de um pêndulo. Se vai-se medir um tempo em dias, tem-se que supor que todos os dias são iguais. Não há como medir a duração de hoje comparando-a com a de ontem, pois ontem não volta mais. Pode-se comparar os dias com as oscilações de certo pêndulo e ver se conferem, mas aí tem-se que supor que as oscilações sempre levam o mesmo tempo. Por comparações desse tipo, entre diversas possíveis unidades de tempo, viu-se que os dias não são todos iguais, que os anos também não são, que os pêndulos podem variar. Bem… até o momento, o que se supõe que seja mais regular e reprodutível é o período de oscilação da luz de uma cor exatamente bem definida. Usa-se a luz emitida pelo decaimento do átomo de césio (o isótopo 133), entre os dois níveis hiperfinos de seu estado fundamental. Como este é um tempo muito pequeno, fixou-se como unidade o segundo, que é um tempo 9.192.631.770 vezes maior. Daí se constrói o relógio atômico, a partir do qual os outros relógios são aferidos.

A relatividade do tempo

Pode parecer que o tempo, assim definido, é algo que flui de modo homogêneo em todo o Universo, como supunha Newton. Mas não. Para cada um, o tempo flui com a velocidade “1″, isto é, 1 minuto por minuto, 1 hora por hora, 1 dia por dia. Mas, comparando os fluxos de um lugar com outro, pode não ser “1″. Assim, em outra galáxia, que tenha certa velocidade em relação à nossa, o tempo lá pode passar à razão de 50 minutos por hora em relação a nós, isto é, a cada hora nossa passam 50 minutos lá. Isto é a relatividade do tempo. É claro que estou falando de relógios que medem o tempo com a mesma unidade. Eles lá, para si mesmos, medem o fluxo normal de 60 minutos por hora. É o chamado “tempo próprio”. Isto foi descoberto por Einstein e já foi confirmado por experiências com o decaimento radioativo dos mésons “mü”, provenientes de raios cósmicos na alta atmosfera e outros experimentos. Existem fórmulas para calcular isto. A intensidade do campo gravitacional no local também altera a marcha dos relógios (e de tudo o mais, como o crescimento dos pelos da barba, por exemplo). Portanto, no Universo, o tempo é realmente algo determinado pelas condições locais da densidade de matéria e do seu movimento e não uma coisa que existe independentemente. Isto também ocorre com as distâncias. Em suma, o espaço e o tempo não são como um palco no qual os personagens representam a peça. Eles também são personagens da peça.

Tempo físico e tempo psicológico

Os seres vivos possuem um modo interno de perceber a passagem do tempo e desencadear vários comportamentos, como o ciclo sazonal das plantas e de animais, ou mesmo, os ciclos circadianos de sono e vigília, por exemplo. No caso dos seres conscientes, como os animais superiores (ou dispositivos artificiais que venham a possuí-la) há outro fator que é a percepção mental interna da passagem do tempo. Essa percepção nem sempre é coincidente com a marcha física do tempo. Isto pode variar de pessoa para pessoa, em função da idade, do estado de espírito ou por ação de drogas. Em geral, à medida que se envelhece, cada ano é uma fração menor da existência, por isso parece um intervalo menor. Outro fator que faz o tempo parecer passar mais depressa é a monotonia. Quanto mais variada for a vivência cotidiana da pessoa mais parece que o tempo demora a passar. Atividades desagradáveis sempre parecem demorar mais que as agradáveis. Mas, tirando essas condições, é notável como a mente tem um cronômetro interno razoavelmente bem calibrado, o que pode ser observado pelo fato comum de pessoas que sempre precisam acordar a certa hora, em geral, despertam poucos minutos antes do despertador tocar e o desligam.

Tempo, música e literatura

Classificando-se as artes segundo os sentidos que impressionam, a literatura e a música unem-se na categoria das que são comunicadas pela audição, já que a escrita é uma mera representação simbólica de sons, como se fora uma gravação codificada da fala, que modernamente ocorre em mídias óticas e magnéticas. Por outro lado, elas podem também ser classificadas, conjuntamente, em artes cujo objeto se desenvolve no tempo, em oposição às artes plásticas, em que o objeto se desenvolve no espaço. A escrita ideográfica, em que os signos não representam fonemas, mas conceitos, também só pode ser interpretada na seqüência temporal dos ideogramas, que não são contemplados simultaneamente, no seu todo, como numa pintura. Vê-se deste modo, que, na própria sistematização que a estética faz das belas artes, música e literatura ocupam células vizinhas do esquema, estando, portanto, unidas por um ponto de vista estrutural. Em que pese a existência da poesia concreta, na qual a expressão artística do poema se manifesta, inclusive, pelo aspecto pictórico, normalmente a poesia é feita para ser declamada (ou cantada, se for a letra de uma música). Então é uma arte que se desenvolve no tempo. A apreensão mental do conteúdo da música e da poesia é feita pela parte do cérebro ligada à audição e sua memorização se dá de uma forma seqüencial, isto é, ordenada no tempo e não numa totalidade simultânea, como ocorre com a memorização de uma gravura.

Referências

Uma discussão adicional sobre o tempo pode ser encontrada nos artigos da Wikipedia:

http://en.wikipedia.org/wiki/Time
http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophy_of_space_and_time
http://en.wikipedia.org/wiki/Arrow_of_time
http://en.wikipedia.org/wiki/Spacetime

Alguns livros sobre o assunto:

Reichenbach, H. “The Philosophy of Space and Time”. Dover, NY, 1958
Grünbaum, A. “Philosophical Problems of Space and Time”. Reidel, Holland, 1973.
Margenau, H. “The Nature of Physical Reality”. Oxbow, Woodbridge, 1977

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails