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O ceticismo é uma premissa para a filosofia. Quem filosofa é sempre cético. Não há como refletir-se racionalmente sobre a realidade, dogmaticamente preso a alguma concepção inflexível. Antes de tudo, ao se examinar qualquer coisa, há que se ter duas posturas. A primeira é a de que a verdade seja o valor supremo a ser buscado. A segunda é que se tem que estar disposto a renunciar a suas convicções face à verdade. Mas há uma terceira: Que nunca se sabe quando se está de posse da verdade. Isto é o ceticismo. Não a negação da possibilidade de se alcançar a verdade, mas a postura metodológica de sempre duvidar de que a tenha alcançado. Como agir então? Aceitando, provisoriamente, a melhor explicação como a que mais provavelmente se aproxima da verdade, até novos conhecimentos. E que melhor explicação é esta? Aquela que passa pela mais exigente bateria de testes, comprovações e verificações estando, até então, vencedora de todas as contestações. Assim progride o conhecimento.
Uma crença, pelo contrário, fundamenta-se na opinião revelada de alguém a quem se atribui autoridade para isto, aceita sem contestação. A crença não admite ser refutada dentro da sua área de aceitação. Quem ousar tal coisa perde a identidade de crente naquela crença. Por isso nenhuma crença pode ser critério de verdade. Um critério de verdade é um procedimento metódico de refutação de uma assertiva, que permanece como verdade enquanto não conseguir ser refutada. Assim considera o cético. Mas ele tem suas crenças e crê no valor do ceticismo, por exemplo. Mas esta não é uma crença elevada a um status de dogma. O próprio cético é cético em relação ao seu ceticismo. Ele o adota como ferramenta de trabalho, enquanto produz resultados confiáveis. E até o momento tem sido assim.
Considero o ceticismo uma salutar postura metodológica de abordagem da realidade. Não a vertente pirrônica, que considera inatingível qualquer conhecimento. Isto não caracteriza o verdadeiro cético. É uma atitude mais própria de uma pessoa dogmática em sua crença num ceticismo mal interpretado. Pelo contrário, o verdadeiro ceticismo rejeita qualquer postura dogmática e qualquer crença não fundamentada. Do que se trata, então? Em primeiro lugar o ceticismo metodológico considera que a realidade é passível de apreensão e proposições verdadeiras podem ser feitas sobre ela. Todavia reconhece não haver garantia “a priori” da veracidade de qualquer afirmativa sobre a realidade (entendida como o que a coisa em si mesma seja). Assim coloca a dúvida como um mecanismo de busca da verdade, no sentido em que incita à procura de mais evidências e comprovações que façam aproximar-se cada vez mais da verdade. Isto não exclui crenças, desde que tenham fundamento. Por exemplo, eu creio na validade do método científico, porque ele conduz a resultados confirmados. No momento em que sua aplicação conduzir a proposições falsas, deixo de crer. Mas não creio nas palavras das escrituras sagradas de nenhuma religião, só porque são sagradas. Nem nos Vedas, nem no Talmude, nem na Bíblia, nem no Corão, nem em Allan Kardec. Mas creio em valores pregados por Buda e por Cristo, no que eles se revelam sábios, prudentes e úteis para uma vida mais valiosa, elevada e feliz. Mesmo não crendo em mediunidade, tenho grande respeito e admiração pela figura de Chico Xavier, por exemplo, visto a sabedoria das palavras que ele proferiu em quase tudo o que escreveu (para mim de sua própria lavra). Quanto a terem sido ditadas por espíritos, não digo peremptoriamente que não, mas só aceito com base em evidências palpáveis.
Do mesmo modo que a credulidade ingênua é objeto de zombaria por parte das pessoas mais sensatas, um ceticismo sem medidas realmente provoca desdém. Mas a incredulidade completa não é a marca do ceticismo. Não há como levar nada adiante sem que se tenha alguma crença. A começar pela existência do mundo exterior, pois não há prova cabal de que a única realidade não seja o conteúdo interno da minha mente. O ceticismo não é uma doutrina, mas sim, uma ferramenta de trabalho. A apreensão da realidade e a construção do saber não dispensam a intuição e a proposição de hipóteses levantadas pela imaginação. Todavia elas só serão incorporadas ao arcabouço do conhecimento científico se passarem pelo crivo do teste e da comprovação experimental ou observacional, nem que seja de suas conseqüências logicamente deduzidas.
Passo a considerar a questão do que seja a verdade. Para mim, trata-se uma adequação entre a realidade e o que se diz a respeito dela. A verdade não é uma propriedade dos entes e sim das proposições. É, pois, lógica e não ontológica. O conhecimento se dá por construção de assertivas a respeito do mundo (científicas ou não). Serão verdadeiras? Como sabê-lo? E se a verdade é uma adequação à realidade, o que é a realidade? Essas questões levam a supor que não se pode saber certamente que se está dizendo a verdade a respeito de algo e, logo, que o conhecimento nunca é definitivo. Mas não se suspende o juízo. A verdade pode ser aproximada cada vez mais, sempre que se proponha metodologicamente a testá-la com todos os recursos de que se disponha. E a concordância a respeito confere, sempre provisoriamente, o status de verdadeira a uma proposição. Que a qualquer momento pode ser derrubado por uma única evidência contrária.
Quanto ao cientificismo (ou um empirismo exclusivista) trata-se também de uma postura tão dogmática quanto um racionalismo irredutível. Não existem juízos sintéticos “a priori” e nem tudo provém exclusivamente dos sentidos. A metafísica existe (mas não tem nada de sobrenatural). Em suma, isto é o ceticismo, uma postura metodológica sensata e prudente. Nada de crenças infundadas, nada de dogmas. Mas também nada de dúvida universal. É fácil ver que a afirmação “duvido de tudo” é incoerente, pois, então se deveria duvidar de que se duvida. Alguma postura é sempre preciso se aceitar sem prova (como axioma) para dar partida ao trabalho de construção do conhecimento. Mas isto é diferente de uma “fé” religiosa, porque é sempre questionável, no sentido em que seria abandonada, se deixar de ser proveitosa.
A afirmativa “se eu penso, então eu existo” não implica em “se eu não penso, então eu não existo”, mas sim em “se eu não existo, então eu não penso” (modus tollens). Para mim o fulcro disso tudo tem a ver com a rejeição do conceito de “Matrix”. A primeira certeza, a da própria existência, pode ser tirada, sem dúvida alguma, da constatação do ser pensante de que ele pensa. Pode-se duvidar da existência do mundo exterior (solipsismo), mas não da própria existência, porque, em se duvidando está se pensando, logo, existe o pensador. A partir desta base, pode ser construído todo um arcabouço de uma compreensão da cognição e da realidade, mesclando o empirismo com o racionalismo. Sobre o que se pensa? Sobre o que os sentidos comunicam à mente. E com essas impressões, a estrutura da mente constrói argumentos, raciocínios, conclusões, que passam a ser o ponto de partida para novos raciocínios, com a juntada de novas percepções sensoriais. E assim vai sendo construída a visão do mundo que cada um tem. Mas a pedra angular é o aceite da própria existência.
Pode-se concluir que o mundo exterior existe realmente, mesmo que se duvide disso, e a dúvida metódica é um poderoso instrumento de pesquisa. Mas não a consideração apriorística de que nada pode ser conhecido. Por isso o ceticismo de Descartes é diferente do de Pirro e consiste na base da ciência moderna. Ser “cartesiano” é duvidar racionalmente das percepções e aplicar judiciosamente a razão para construir o edifício do conhecimento. Quando se diz “certeza”, isto já significa que é absoluta. Tenho para mim (e isto é que é filosofar, ou seja, estudar, analisar, refletir e concluir por si mesmo, e não ficar citando opiniões alheias - que podem ser estudadas, só para que se forme a própria) que não há como se ter certeza de coisa alguma, exceto o “cogito, ergo sum” com que Descartes principia seu ceticismo metodológico, ao considerar pelo menos uma certeza, a da existência de sua própria consciência. Toda a realidade exterior pode ser uma ilusão, mesmo que eu considere que não seja. A plausibilidade de que o mundo seja real é bem forte, de modo que o aceito e, a partir daí, construo minha visão e meu modo de interagir, sem, contudo, estar garantido. Para mim, este é o único modo de se proceder, salvo melhor juízo.
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2 comentários:
Concordo quando você diz que a verdade absoluta, última, não é possível de ser conhecida.
Não há como saber ao certo se tudo que percebemos não é uma ilusão. Contudo, a ciência admite que a realidade existe, e que não é tudo uma ilusão. Há um tanto de fé aí, portanto.
Outro ponto interessante é que a ciência admite que o método científico não é perfeito. Se fosse, só deixaria passar a verdade. Mas, do contrário, ele valida hipóteses que são derrubadas posteriormente pela própria ciência. E, até serem derrubadas, essas hipóteses são tidas como “verdades” científicas.
É um filtro falho, portanto. E se é falho, não há como saber ao certo se ele não está impedindo a passagem de parte da verdade.
O método cientifíco decorre da lógica humana. A lógica humana, por sua vez, decorre da forma como percebemos o funcionamento do mundo. É uma criação psíquica formada a partir de fragmentos da realidade, que são as impressões captadas pelos sentidos.
Mas essa percepção é limitada. Tudo o que a gente vê como real é apenas uma “leitura” das impressões captadas pelos nossos sentidos.
Também a nossa impressão da passagem do tempo é uma ilusão, conforme Einstein demonstrou.
A lógica humana, de que falo, é a de Newton e Descartes. Aquela que, sem muito esforço, faz sentido para qualquer pessoa.
Mas, para aquilo que os nossos sentidos não captam, por exemplo, para o infinitamente pequeno ou para o infinitamente distante, parece que essa lógica já não se ajusta com a mesma facilidade.
Não quero dizer que essa lógica não procede. Em absoluto. Estão aí todos os avanços científicos que a corroboram. Contudo, penso que talvez essa lógica só funcione para a porção da realidade mais imediata. Aquela que não está muito longe dos nossos sentidos. Para esta realidade, o método cientifico funciona perfeitamente. E a aplicação do conhecimento, por ele validado, à essa realidade imediata é capaz de transformá-la, para criar novos objetos e outras formas de energia.
Talvez o homem tenha desvendado o funcionamento da porção da realidade mais imediata a ele. Talvez, afinal, saibamos, de fato, uma porção da verdade.
Mas talvez não seja possível que TODA a verdade passe pelo filtro do método científico.
O método científico é uma ferramenta do conhecimento e, como tal, passível de se tornar obsoleta.
Talvez precisemos de um novo método. Uma nova ferramenta. Ou pelo menos, de uma reformulação, uma modernização da que temos.
Talvez um novo modo de pensar, uma nova lógica.
O que você acha?
Sim, Cássio. O método científico não pode ser uma camisa de força. O critério de falseabilidade de Popper é extremamente válido e útil, mas não pode ser exclusivo. Além disto, ele não aborda o que é mais importante na ciência, que é a formulação das hipóteses e não seu teste. Para isto não há método e, sem dúvida, a intuição executa um relevante papel. Seria preciso que os cursos de doutorado abordassem também o cultivo da habilidade em usar a intuição e em formular hipóteses plausíveis, a serem testadas.
Nisto também não se enquadra a lógica tradicional, a dicotômica. Outras lógicas estão aí, e, na construção de uma inteligência artificial, têm que ser consideradas, como a lógica policotômica e a difusa, pois é assim que a mente funciona. É claro também que lógica não é só dedução. A indução também faz parte da lógica, como muitos esquecem.
Apesar de tudo, é a ciência, desde que se desfaça de concepções rígidas e dogmáticas, a melhor forma de abordagem da realidade, a fim de construir o conhecimento sobre ela.
A filosofia deve socorrer naquilo que a ciência não for capaz, mas ela também precisa estar sujeita a critérios de veritação de suas assertivas, caso contrário perde toda a credibilidade, por traduzir-se apenas em "doxas" e não "epistemes", isto é meras opiniões de quem as formula, sem que se verifique se são verdadeiras.
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