domingo, 9 de maio de 2010

Religião e crença

É preciso se fazer distinção entre Religião e Crença Religiosa. A crença religiosa é a aceitação, como verdade, de proposições a respeito da existência de entes sobrenaturais, como deuses, espíritos, almas, anjos, demônios, gênios, bem como sobre o comportamento dessas entidades, sua relação com o mundo natural e todas as decorrências para a vida dos seres naturais (humanos, em especial) da veracidade de tais proposições. Por outro lado, religião é todo um aparato construído em torno dessas crenças. Ela envolve não só as crenças, mas uma doutrina que as corporifica e justifica, uma comunidade de fiéis, uma organização que administra tais crenças perante a comunidade, um corpo de funcionários (sacerdotes e agregados) um conjunto de práticas litúrgicas a respeito das crenças, livros sagrados sobre elas, uma legislação a respeito e um conjunto de instituições e edificações (templos, seminários, escolas, asilos, mosteiros, hospitais etc.). Tal aparato se caracteriza como uma "representação social", nos termos de Durkheim, Piaget, Moscovici, Jodelet e Fischer.
Pode-se possuir crenças religiosas sem se ser filiado a religião alguma, da mesma forma que pode-se ser filiado a uma religião, por conveniências sociais, sem se possuir a crença correspondente.
Minha percepção é de que, antropologicamente, as crenças surgiram num estágio bem anterior que as religiões. Sua origem se prende à busca de explicações para as ocorrências inexplicáveis a uma primeira abordagem. Como, normalmente, toda ocorrência podia ser imputada à ação de um sujeito (humano ou animal, em geral) considerou-se que as que não possuíam um sujeito identificável seriam devida a sujeitos ocultos, invisíveis, porém capazes de produzir ações sobre a natureza. Tais sujeitos seriam os espíritos. No caso de serem detentores de poderes especiais, seriam deuses. Em todas as culturas, de modo independente, tais noções foram concebidas. Com o passar do tempo elas vieram a ser corporificadas em uma narrativa consistente, inventadas por anônimos e passada de geração a geração, com acréscimos e variações, consistindo nos "mitos", dos quais surgiram as primeiras religiões.
As religiões, contudo, não são um produto espontâneo do povo, mas uma apropriação dessas noções por um grupo especial dos "feiticeiros", "xamãs" ou outro nome que lhes seja dado, que, certamente diferenciado por sua maior inteligência e poder de manipulação das pessoas, passaram a gerir tais conhecimentos, não só em benefício do povo, mas, especialmente, do próprio grupo, que, nesta circunstância, passou a gozar de vários privilégios, vindo a se tornar os "sacerdotes". Um fator, contudo, foi determinante no estabelecimento das religiões como força coerciva e controladora do comportamento social. Trata-se da associação dos sacerdotes com os detentores do poder político, em geral derivado da força militar. Como a manutenção da submissão do povo à vontade do potentado pela coação pela força é algo por demais custoso, pelo menos nos períodos de paz, e não se pode viver permanentemente em estado de guerra, a submissão pelo convencimento religioso, que se dá em função do medo de castigos sobrenaturais ou da danação na vida eterna, é sumamente conveniente e isto foi logo percebido pelos chefes das nações que se auto-proclamaram sumo-sacerdotes e descendentes diretos dos deuses. Por um sistema de troca de favores e coação física os sacerdotes foram cooptados pelos mandatários e os dois grupos dominaram e ainda dominam as massas populares. Alguns podem até estarem convencidos genuinamente da origem divina de seu poder, mas, certamente, a maioria sabia que isto era uma invenção para dominar o povo.
As complexas religiões hinduísta, judaica, zoroastrista, budista, taoísta, o paganismo greco-romano, a cristã e a islâmica foram uma evolução desses mecanismos sociais, em alguns casos, umas surgindo das outras, como o budismo do hinduísmo e o cristianismo e o islamismo do judaísmo. O espiritismo provém de uma racionalização do hinduísmo com o cristianismo.
Na atualidade, o crescimento do conhecimento científico em todas as áreas mostra que sempre é possível achar-se explicações naturais para tudo, minando as bases das crenças religiosas, pois a hipótese de deus e de espiritos não precisa ser invocada para coisa alguma. Mesmo assim, a rejeição de crenças religiosas e a adoção do ateísmo, ou, pelo menos, do agnosticismo, ainda não é tão disseminada. Em parte porque o analfabetismo científico ainda impera para as massas populares. Mas, mesmo entre a camada culta da sociedade, o ateísmo ainda não é a regra. Isto se dá, no meu entendimento, primeiro porque a cultura humanística ainda prepondera sobre os conhecimentos das ciências naturais, segundo porque assumir-se ateu ainda é, de certa forma, uma atitude anti-social em muitos meios, em alguns casos, como nos estados teocráticos muçulmanos, podendo levar, inclusive, à pena de morte.
No entanto, a tendência é no sentido de se ter uma rejeição cada vez maior das religiões. Isto é bom ou ruim? Há um lado ruim, uma vez que a perda das referências éticas da religião leva a um comportamento desprovido de balizamento moral que propicia o aumento da licenciosidade e da criminalidade. Ética, contudo, não tem nada a ver com religião. As religiões é que se apropriaram dela como parte de seu corpo doutrinário. Pode-se, com toda a certeza, desenvolver-se um comportamento ético na sociedade sem apelo nenhum para prêmios e castigos na vida eterna. O lado bom é, justamente, o afastamento de ilusões, que, mesmo caras a quem as adota, são enganosas. É preferível encarar-se a realidade da inexistência de deus e de seu socorro nas aflições, uma vez que orações são inteiramente inócuas. Há que se confiar na própria sociedade e nos outros para o socorro de cada um e para a disseminação do bem e erradicação do mal.

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